Corpo do artigo
O romancista Roger Vaillant escreveu que votar não lhe despertava entusiasmo, tão ínfima era a influência da sua própria opção nos resultados finais: "Votar no sufrágio universal é um acto religioso. Colocar o boletim na urna, com o seu cerimonial, é um acto mágico que dá a ilusão de participar (...)". O peso de um voto por entre milhões de eleitores é efectivamente pequeno. A cerimónia existe, com o seu lado de religião civil. A magia está presente. No entanto, quem já esteve privado do direito de escolher os seus representantes sabe que, nesse singelo gesto, há algo mais - ainda que seja uma ínfima parcela da decisão colectiva - do que a "ilusão de participar" a que o reduzia o desabafo elitista do escritor ex--comunista, desiludido com a política e os políticos.
Vaillant escrevia em Outubro de 1962. O país e o contexto eram outros. Em Portugal, no ano 2011, já se jogou quase tudo. Nos anos de governação anteriores, na multiplicação das sondagens, nos telejornais e nos debates televisivos. Mas não só: o acordo sobre a política económica e financeira com a Troika condiciona o Governo que sairá do acto eleitoral. Além disso, introduz uma espécie de muro de Berlim na política portuguesa, entre os três partidos subscritores (o eixo governativo) e os que recusam a intervenção externa (o eixo radical). A separação entre estes dois grupos de partidos já existia antes, mas - após a intervenção tutelada pelo FMI, o BCE e a União Europeia - a fronteira ganhou maior rigidez.
A maioria absoluta de um só partido, a acreditar nas sondagens, é altamente improvável. A exigência de um Governo com maioria estável no Parlamento, formulada pelo presidente, só consente alianças PSD-CDS ou PS-CDS, sendo improvável a hipótese de um "bloco central" (PS-PSD), devido à rivalidade e incompatibilidade entre os respectivos líderes, ou de uma aliança de "salvação nacional" tripolar, ainda mais complexa. Para a formação do futuro Governo será determinante saber qual o partido que fica em primeiro lugar. É fraca a probabilidade de uma coligação PSD-CDS, caso o PS obtenha, de novo, o primeiro lugar sem maioria, embora essa solução seja viável, sob o ponto de vista constitucional, se os deputados eleitos pelos dois partidos de Direita forem suficientes para formar maioria. A menos que o presidente Cavaco Silva opte por assumir uma intervenção política mais incisiva, o que não parece condicente com o perfil discreto que revelou na crise gerada após a demissão de José Sócrates.
O muro de Berlim introduzido pelo acordo com a Troika acentua ainda mais a assimetria entre os partidos de Direita e Centro Direita (PSD e CDS) e o PS, quase impossibilitado de acordos, mesmo pontuais, com os partidos do outro lado. A vida não está fácil para quem queira votar útil, no sentido da defesa do Estado Social (ou melhor: daquilo que dele resta). O acordo com os organismos internacionais não visa apenas o saneamento financeiro, nem se limita a estabelecer metas. Contém implícito um acordo programático com conteúdo ideológico neoliberal. A União Europeia acentuou, no século XXI, a sua evolução nesse sentido. A data de Março de 1999 assinala uma nova era. O principal partido social-democrata europeu (no sentido histórico da designação) rendeu-se à dominante neoliberal, com a demissão de Óskar Lafontaine do cargo de ministro das Finanças do Governo alemão.
Boa parte do programa do próximo Executivo já foi estabelecida de fora para dentro. Não serve de muito demarcar com exactidão a fronteira entre os efeitos da crise internacional e a responsabilidade do Governo de Lisboa. O que está em jogo, nas legislativas de 5 de Junho, é a aplicação do acordo. Pode desejar-se uma evolução com maior (ou menor) sensibilidade às questões sociais e à continuação do serviço nacional de saúde. Pode pretender evitar-se que, em matéria de legislação laboral, o conceito de "justa causa para o despedimento" se dilua numa flexibilidade arbitrária e sem balizas. Pode esperar-se uma política fiscal que não destrua a classe média nem esmague os mais carenciados. Pode defender-se que o Governo português não se reduza à dimensão de Estado mínimo, sem vontade para lançar políticas que conduzam, a pouco e pouco, ao (cada vez mais mirífico) crescimento económico.
Talvez este programa "aplicacionista" seja considerado irrealista em face do predomínio do pensamento economicista e neoliberal. Talvez, após seis anos de Governo de José Sócrates, mereça mesmo o qualificativo de ingénuo. Talvez seja apenas um voto de vencido declarado a priori. Atribui-se a Alexandre O'Neil o slogan meio irónico, meio sério: "ele não merece, mas vota no PS". Em coerência com o meu passado, votarei no mal menor, sem esconder que a curta caminhada a pé, de minha casa à mesa de voto no Liceu Passos Manuel, será um triste passeio de domingo.
