O diligente ministro da Administração Interna impôs um prazo de 20 dias para a conclusão de um relatório que explique o que falhou no combate aos fogos que fustigaram o Algarve. Já o superdiligente ministro da Presidência, Miguel Relvas, foi incumbido de liderar uma comissão interministerial (o instrumento a que qualquer Governo recorre quando o tema queima) para, supostamente, se perceber por que arde o país mal a temperatura sobe e para ajudar as vítimas do fogo. Podemos ficar descansados: a matéria está em boas e diligentes mãos.
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A verdade é que se há coisa que não podemos, nem devemos, é ficar descansados. Aposto, singelo contra dobrado, como, daqui a umas semanas, o Governo terá decapitado um ou dois responsáveis pela proteção civil e combate aos incêndios. Aposto, singelo contra triplicado, como, daqui a um mês ou dois, o Governo nos apresentará um impecável documento com uma impecável estratégia que impecavelmente acabará com este inferno que todos os anos rouba aos menos culpados o que o esforço de uma vida construiu.
É da história - e ela repete-se. A decapitação, resolvendo pouco ou nada, entusiasma o povo. Na Idade Média, o carrasco decepava, umas atrás das outras, cabeças de animais para apurar a técnica, até ao ponto em que, com notável precisão, cortava com um só golpe a cabeça ao condenado. O povo rejubilava. Na Idade Moderna (a nossa), a decapitação, agora política, é tanto mais eficaz quanto mais rápida for a ação do ministro com o pelouro e quanto mais notáveis forem as conclusões dos estudos.
Importa pouco que os factos permaneçam. Este ano, até meados de julho, arderam 36 946 hectares de floresta em Portugal, mais do triplo (!) do valor registado no mesmo período do ano passado; o número de ocorrências (11 966) é o pior dos últimos dez anos. Infortúnio? Culpa do calor? Falta de meios? Nada disso: pura incompetência política. As lágrimas que as mãos enrugadas dos proprietários agrícolas escondem, o desespero preso nos olhos de quem vê a sua casa consumidada pelas labaredas, os prejuízos de milhares de milhões de euros para o país são, acima de tudo, causa da incompetência política. E a essa, já se sabe, não há espada que a decepe.
Com a galopante desertificação e abandono das terras, a importância do território e respetiva definição de políticas de planeamento deveriam estar no topo das prioridades dos decisores. Não estão. Percebe-se isso quando vemos o Governo a facilitar a plantação de eucaliptos, uma das espécies com maior potencial inflamável. Ou quando o primeiro-ministro decide emitir uma ridícula nota a agradecer o trabalho dos bombeiros. Eles não são parte do problema. Eles dão a vida para resolver um problema que é dos decisores políticos.
Atitudes como estas sustentam uma evidência: o país vai continuar a arder. Para cada vida desfeita pelas chamas haverá uma cabeça para cortar.