"Bolas! Até na justiça! Isto vai bonito, vai!" Não foi necessário olhar para a televisão daquele café de estrada, na Beira interior, na tarde de segunda-feira, para perceber que o tema dos comentários era a notícia da demissão de um magistrado de um tribunal superior, num escândalo a que só o coronavírus ajuda a disfarçar a amplitude.
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"Aquilo é como na política, pá! São todos iguais!", ouvi logo ao meu lado, no balcão. As vozes que emanavam daquelas samarras ressoavam uma desencantada unanimidade. "É como os árbitros! Cada um é pior que o outro!", sentenciava um terceiro.
Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes.
Se não acreditam no que escrevi, façam o teste: ao ouvirem comentários negativos sobre figuras políticas, sobre os partidos ou o Parlamento, sobre grandes empresas ou outras entidades coletivas, experimentem tentar um discurso abertamente contraditório. Logo verão a reação! Logo "verão", não, logo veriam, porque tenho o pressentimento de que a maioria das pessoas que me lê já não estará disponível, com sinceridade, para ensaiar esse discurso. Constato que muito rara é hoje a personalidade pública ou instituição que preserva um prestígio que, face a qualquer súbita acusação ou desconfiança, suscite um automático e maioritário benefício de defesa.
A estabilidade das democracias pressupõe a existência de um grau mínimo de confiança entre a generalidade dos cidadãos e as instituições representativas do poder dos estados, para além de, pelo menos, alguma neutralidade no tocante à aceitabilidade de outras forças relevantes no respetivo tecido social.
A minha perceção, que concedo possa ser impressionista, é de que, com todos os seus defeitos, eventuais manipulações e desvios corporativos, a máquina da justiça se mantinha, até há bem pouco tempo, imune a suspeitas genéricas de corrupção ou tráfico de influências - salvo casos pontuais bem identificados. O que, nos últimos meses, tem vindo a passar-se num dos nossos tribunais superiores é, assim, muito grave. Todos esperamos que se trate de episódios bem isolados, a que possa ser posto cobro, com rapidez e transparência. É que se os cidadãos se sentirem tentados a duvidar da ética dos órgãos da sua justiça estaremos perante a perda de uma confiança essencial que sustenta o sistema democrático.
Embaixador