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Maria João Pires conversou com Bernardo Mendonça no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”. Não digo que deu uma entrevista porque Maria João Pires não dá entrevistas, nem Bernardo Mendonça as pede. Conversaram.
Bernardo Mendonça diz que a biografia de Maria João Pires se pode resumir assim: “tocou com toda a gente, em toda a parte do Mundo, com as melhores orquestras e nos palcos internacionais mais conceituados”. E a partir daqui conversam sobre a infância enquanto criança-prodígio (renegada pela adulta prodigiosa), das exigências da carreira - as viagens tenebrosas -, de Belgais, das preocupações sobre pedagogia, das fermentações do pão, das caminhadas, de arrependimentos e alegrias.
Sempre ouvi Maria João Pires mas nunca a tinha ouvido. Sempre ouvi as mãos de Maria João Pires. Através delas, quais raízes até à cabeça, julgava conhecê-la um pouco: como qualquer fã, estava iludido.
Maria João Pires tem um modo discreto e doce de falar, como se cada frase ensaiasse uma frase mais perfeita. Dá-lhe uma certa cadência que atrai logo quem a ouve. Além do mais, fala como se ninguém a ouvisse - decerto nem vê os microfones. Isto resulta num certo encanto a que a minha geração não está habituada: está ali genuinamente uma pessoa, não alguém constrangido pela opinião pública e em busca da mensagem mais apelativa, a frase sonante, os temas do momento.
É essa pessoa que interessa. A conversa com Bernardo Mendonça afasta-a do talento - embora se perceba que talento e pessoa cresceram em conjunto e se educaram mutuamente, vale muito mais a pessoa do que a pianista. O talento paira sobre os temas como uma auréola, nada mais.
Maria João Pires fala com a simplicidade dos sábios. E a humildade não sei de quem. Podemos julgar que um grande dom exige uma grande modéstia, mas tantos grandes artistas foram grandes arrogantes sem que isso diminuísse a sua arte; e tanta gente arrogante não sabe o que é a arte. A ideia de que o belo é bom não funciona para o carácter, mais vale ficar com os gregos antigos, que a inventaram, e com uma certa cultura moralista actual, que a reutilizou sem saber. Nalguns casos raros, o dom do carácter e o dom da arte conjugam-se. Sendo assim, Maria João Pires fala com a humildade de Maria João Pires.
Perto de bater no fim da minha coluna, fico sem espaço para descrever como ela contraria a competição, rejeita a ideia de perfeição em detrimento da tentativa, confessa-se como intérprete, portanto mão de uma voz maior, e diz que o importante é fazer os esforços certos na altura certa.
Sugiro ouvirem, que duas horas de conversa não se resumem no quadrado desta crónica.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia