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Cedo nesta manhã de julgamentos, a juíza trocou os nomes de uma testemunha, por ali passavam Marílias, Eunices, Vivianes, Neuzas com as suas vidas transformadas, por misteriosa arte humana, em infernos domésticos. Alguns casos já chegavam ao tribunal duros de perceber, quanto mais de resolver.
- Desculpem o engano, é que isto é muita coisa. Eu às vezes sinto-me mais uma assistente social do que uma juíza, desabafou a juíza.
Entrou a testemunha, mãe da vítima. A acusada preferira não prestar declarações sobre a alegada violência doméstica.
- Ele é meu filho, esta é a senhora que andou com ele.
- A sua nora...
- Pois, não sei. Eles estão a tratar do processo de divórcio.
- Pois, mas ainda estão casados.
- Viveram durante muito tempo numa casa nossa que era ao lado de nós. E também noutra casa que estava vazia e nós emprestávamos. Juntaram-se, decidiram casar-se... Era uma namorada. Nós nem sequer fomos ao casamento. Como o meu filho nunca se queixava, a situação começou a ser mais evidente quando a senhora uma vez lhe deu uma facada na perna e ele foi parar ao hospital.
Neste momento, entrou uma gargalhada da sala ao lado, pela porta aberta, ah-ah-ah-ah-ah, era um riso que não tinha nada a ver com o caso, um riso enlatado como numa má comédia de televisão, e a escrivã foi lá dentro exigir silêncio, fechando a porta, só ouvi som mais inoportuno quando há anos, no momento em que se contava o atropelamento de uma mãe com a bebé ao colo, um telemóvel tocou na sala, num insuportável timbre de orgãozinho, a entrada Light My Fire, dos Doors, tin-tirim-tim-tim-tim-tim...
A mãe disse que nos filhos os conselhos nunca são bem aceites, o filho às vezes aparecia com uma marca na cara, mas explicava "ah, bati com a cara aqui..." e escondia as marcas.
- Era uma vergonha, gritos, discussões, zaragatas.
- O que é que ouviu?
- Coisas que eu não... eu não...
- Nós aqui temos de as ouvir e a senhora, como testemunha, tem de as dizer, não se preocupe que estamos habituadas.
- Ahhh..., suspirou a mãe, de olhos inchados, ó cabrão, ó filho desta, ó filha da outra. Mas o pior eram os actos em si.
- Alguma vez viu essas agressões?
- Várias vezes a vi dar um encontrão. Agora as coisas que se viam bem eram as marcas.
- E ele a ela?
- Talvez existisse uma coisa de parte a parte, mas nunca vi.
Uma vez a nora pôs a árvore de Natal no telhado da casa.
- Chamámos os bombeiros, que chamaram a polícia. A senhora até deu um murro no bombeiro. O meu filho foi para a nossa casa e toda a noite ouviu um martelo, ela tinha espatifado os azulejos do chão da sala, da cozinha, da casa de banho, todos os azulejos. O chão novo que eu tinha colocado para arranjar o ninho de casamento deles! Um dia, fui buscar o meu filho debaixo de uma ponte em Tavira, a dormir no carro, cadavérico, a passar frio, drogado. Tinha marcas no pescoço. Disse-me que tinham sido os drogados, por dívidas dele. Mas depois contou-me que foi ela quem lhe apertou os cintos de segurança.
Por exigência dos pais - a alternativa era o corte total para o resto da vida - o filho foi para tratamento da toxicodependência, mas a nora preferir pegar no dinheiro e voltar para o Brasil. Regressara três meses depois e agora ali estava, silenciosa no banco dos réus, com a mãe do marido à frente, a contar isto que ouvimos, e a sua própria mãe atrás, assistindo, de cara fechada.
Uma árvore de Natal no telhado e um cinto de segurança feito corda de estrangular. Mais uma facada nas pernas - e agora serei juridicamente lamechas - nos corações de mãe.