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Vivemos tempos de enfoque discursivo nas mudanças e de uma agitação desordenada sobre a arrumação das forças políticas, das ideologias, e da relação de forças na geopolítica. É um tempo semelhante àquele que Bento de Jesus Caraça designou, em 1933 (in “A cultura integral do indivíduo”), seis anos antes do início da II Guerra Mundial, por “tempo de passagem”. Nele “chocam-se todas as correntes, coexistem todas as contradições”. É isto que observamos, por exemplo, nas políticas de habitação, emprego, ensino e justiça.
Nas últimas décadas as políticas da habitação foram concebidas como se estivéssemos perante problemas individuais, quando se trata de uma questão coletiva, a exigir compromissos e ação do Estado. A verdade, nua e crua, é que os jovens se deparam, agora, com um gravíssimo bloqueio: só os filhos dos ricos e alguns de classes altas terão acesso a habitação. Os preços especulativos das casas e os baixos salários matam-lhes os sonhos. A efetividade do direito à habitação é essencial para a coesão social e para a substituição equilibrada das gerações. O falhanço destes objetivos torna a sociedade disfuncional e mata a democracia.
A ministra do Trabalho quer introduzir alterações às regras para atribuição do subsídio de desemprego. Disse ser preciso evitar que alguém “que não trabalha possa ganhar mais pelo subsídio de desemprego do que se estivesse a trabalhar”. A suspeição sobre os desempregados é velha, rançosa e humanamente gélida. Eles sofrem imenso por não terem emprego. Uma parte nem sequer tem acesso ao subsídio (que é um direito) por causa da precariedade. O valor médio mensal do subsídio de desemprego é 649 euros.
A ministra avançou a ideia de os desempregados poderem manter parte do subsídio de desemprego quando forem obrigados a ir trabalhar por salários miseráveis. Quem paga? Todos os outros trabalhadores porque é deles o dinheiro da Segurança Social. Quem beneficia? Os patrões, ao serem dispensados de cumprir os preceitos constitucionais de remunerar devidamente todo o emprego. Esta ofensiva é tão grave como a alteração à TSU tentada pelo Governo PSD/CDS em 2012.
As disfuncionalidades deste país crescem aceleradamente. Mais jovens universitários estão a abandonar os seus cursos por dificuldades associadas à pobreza em que vivem as suas famílias. Isto é desastroso. Na Justiça, temos um conluio entre atores da justiça espetáculo e alguns maus jornalistas. Os resultados estão à vista: um contínuo desacreditar da democracia; a extrema-direita instalada a minar todas as instituições; a promoção da bufice, instrumento do fascismo.
Entretanto, os dois principais atores políticos da última década contribuem para este país disfuncional. Marcelo Rebelo de Sousa - humanamente merece solidariedade perante a situação por que está a passar - andou 50 anos a prever tudo por antecipação, mas não consegue ver o mau comportamento do seu filho, praticado nas suas barbas. António Costa seguiu o apelo que Passos Coelho fez aos jovens em 2012, abandonou a sua “zona de conforto” e, devidamente empurrado pela Direita, emigra. Só falta mesmo a erosão do Partido Socialista, que dá fortes sinais de vir a ser cumprida.
Bento de Jesus Caraça disse que a coexistência de todas as contradições do “tempo de passagem” fazem desse tempo “uma feira de desvarios”. Com propostas novas e ação há que desmontar a feira.