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Não é meu hábito escrever sobre estas coisas. Mas é impossível ficar indiferente depois do homicídio, ocorrido a semana passada, de uma criança de três anos, em Setúbal. Tal como não é aceitável a indiferença à habitual ferocidade da matilha do espectáculo televisivo nos dias negros do acontecimento. Aconteceu-me estar, por exemplo, a almoçar tardiamente num restaurante junto à minha casa e no ecrã, felizmente silencioso, passavam imagens do quarto da vítima (um "exclusivo", com certeza), pouco tempo depois do sucedido, com uma nota de rodapé em que se lia que "a maca não pôde sair pela porta". Em simultâneo com esta barbaridade, temos vindo a encontrar mais notícias de outros homicídios, cometidos em ambiente "familiar" ou conjugal, igualmente de uma violência inaudita. Tudo serve para matar, desde o tiro ao martelo, à asfixia, etc. Isto coloca uma pergunta. O que é que está a mudar na sociedade portuguesa, ou foi ela sempre assim em modo silencioso? O etnólogo e antropólogo Jorge Dias, talvez o homem que melhor "nos" estudou, já em 1968 não se enganava. Dizia então o seguinte: "é a educação familiar e as inter-relações sociais que contribuem para que se mantenham os ideais básicos de um povo (...) A difusão de novas concepções de vida ou a perda das antigas, sem substituição por nada de concreto e claro, sobretudo nas gerações mais novas, é um facto (...). A brandura dos costumes e o temperamento cordial do nosso povo vão sendo substituídos por dureza e grosseria". Pelos vistos, também pela superstição e pela perversão, a democrática incluída. O que suscita outra pergunta. Onde estão o Estado e a Justiça, se quisermos, o Direito, no meio desta tremenda ecologia anti-espiritual e materialista no pior sentido do termo? No caso em apreço, o Estado limitou-se a "referenciar" o "risco", como, aliás, costuma fazer nos casos depois irremediáveis de violência doméstica. A Justiça, administrada pelos tribunais auxiliados pela investigação criminal, nem sempre consegue estar à altura da sua função por um desligamento progressivo e preocupante do real. E a opinião pública ajuda a "metastizar" e a frustrar um "sentimento jurídico colectivo" credível. Da que "se publica" e vê, nem vale a pena falar. Vivemos numa sociedade doente, individualista e egoísta, dirigida pela pior elite de que há memória recente, e só damos por isso, com escândalos hipócritas, quando emerge uma tragédia desta dimensão humana, social e cultural. Aquela criança de Setúbal é, afinal, o grito desesperado do poeta feito morte: "quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia dos anjos? Ai, a quem podemos dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens. Nós não somos confiáveis neste mundo definido".
*Jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia