Quando Leonard Cohen editou o álbum "I"m your man", em 1988, não sonhava que Alexis Tsipras poderia ser o homem certo para o pontapé de saída na construção da nova Europa na qual o povo grego se decidiu democraticamente a empenhar através das eleições legislativas do passado domingo. Mas, agora e nas mãos da realidade, sente-se um travo de profecia nos primeiros versos da canção mais emblemática desse disco, "First we take Manhattan": "They sentenced me to twenty years of boredom/ For trying to change the system from within/ I"m coming now, I"m coming to reward them/ First we take Manhattan, then we take Berlin". Poderá Alexis Tsipras, primeiro-ministro grego aos 40 anos, com o Syriza no limiar da maioria a que chamamos absoluta, tomar Berlim de assalto e reconfigurar o mapa da Europa para a génese daquilo a que tantos europeístas convictos apelidam de "sonho europeu"? Como escrevia na canção, depois de condenado a 20 anos de monotonia ao tentar mudar o sistema por dentro, eis que chega a hora em que a recompensa surge pelas próprias mãos. Cohen descrevia a canção como o libertar da emoção, revolta e da energia que só os extremos lhe conseguiam transmitir. "É por isso que viveu Malcom X", dizia. Primeiro ganhar Atenas, depois tomar Berlim. Não é uma tarefa para um só homem, apesar de ser Tsipras, indiscutivelmente, o homem do momento.
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Oprovincianismo democrático com que grande parte dos partidos do poder em toda a Europa (Portugal, inclusive) receberam a esmagadora vitória destes "radicais de esquerda" só é proporcional à chantagem que exerceram sobre a Grécia nos últimos meses. Chantagem, essa, que terá sido a alavanca final para o estrondo da vitória do Syriza, num assomo de autodeterminação, revolta e profundo fastio do povo grego pelos anos de mais e do mesmo. Há um momento em que acontece. A maioria das pessoas, já esmagadas pelo peso da austeridade e sem perspectiva de vida, sem retoma económica à vista desarmada, já divididas ao meio ou destruídas em pedaços pelo cutelo germânico da dívida, tendo já provado o sabor amargo da receita que lhes é imposta como cura para os males que teimam em não desaparecer, dizem... basta.
Omedo não é cultivável num povo que viva na miséria ou à porta dela, com cuidados básicos de saúde ceifados sem pudor pelos burocratas da esmola, especuladores e euro-troika para consumo externo. Há um momento em que se torna insuportável e é demasiado evidente. A existir futuro para a Europa, só a inclusão e a racionalidade económica sustentadas numa moeda com rosto de gente na frente e no verso pode assegurar a porta por onde as pessoas passam e vivem. Livres para entrar e livres para sair. E é da palavra "permanência" que a Europa tem de falar abertamente e desde já, como objecto fundamental da sua existência. O exemplo grego não pode falhar e será a última oportunidade para que se revertam as políticas cegas que de nada serviram senão para alargar o empobrecimento e o desespero. Entendam o sinal, revertam as políticas antes que o fascismo se apodere da liberdade pelo voto. Os gregos não são eurocépticos e estão a dar essa oportunidade de bandeja ao poder europeu. Se esta Europa não abraçar a oportunidade que os gregos lhe estão a dar, descobriremos que os verdadeiros eurocépticos e algozes da Europa, afinal, sempre estiveram no poder até hoje.
Eé, portanto, como uma oportunidade de euro ou de ouro que esta Europa que cresceu ao contrário deve olhar o Syriza e a "estranha" coligação governamental que o partido de Tsipras assumiu com o partido dos Gregos Independentes. No limiar da maioria dos votos mas sem ela, caso o Syriza optasse por uma coligação dentro da sua esfera política, seria acusado de fundamentalismo e negação. Ao alcançar um acordo com um partido de outra família política, ganha espaço e tempo, permite o diálogo e procura o consenso. É da salvação que estamos a falar. Quanto tempo mais vai precisar a Europa para perceber e integrar a lição grega, parando de lhe criar obstáculos? Quanto mais tempo vai afundar a cabeça do seu polvo e armar os seus tentáculos? Quando se dispõe a receber e a parar de extorquir? Em Portugal, como em toda a Europa, o momento é de redefinição. Mais uma oportunidade. Que os radicais nos salvem dos extremistas. Que nos salvem de um dia em que já não seja possível.