Na minha rua em Lisboa há uma voz do alto. Quando passo, pergunta-me à janela do primeiro andar: "Diga-me por favor que horas são". A voz tem alguns dentes mas não todos: quem a fala soltou-os um a um em oitenta anos de vida e muitos a muitos na última queda, que lhos arrancou como uma tosse de filme depois do murro.
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Antes, a voz era só de velha que insistia depois da resposta: "São mesmo essas horas? Então já vai sendo tempo". Já seria tempo de fugir da casa de telhado desabado e paredes rachadas. Mas simplesmente já vai sendo tempo de perguntar de novo as horas.
"Trata-me por Querida", pedia ela. A Querida forrou a casa com fotografias de gatos luzentes e de um neto no pior momento da puberdade; forrou-a com calendários dos anos noventa alusivos à Expo e quadros semelhantes ao Menino da Lágrima. Na mesa da sala - que também é quarto - guarda um caderno de apontamentos e um retrato de quando ela, agora Querida, ainda era Queridinha. Não chega a ter sido bonita.
O caderno diz "ontem veio cá o neto". A data está apagada pelo passar do dedo, mas ontem pode ter sido há vários anos. Depois dessa visita, teve um cão que morreu. Como se livrou Querida do cadáver não se sabe, talvez no jardim público onde passeavam - mas ela por vezes nem consegue descer à rua. Embora decerto preferisse tê-lo enterrado por si mesma, alguém a quem ela anunciou a morte deve ter chamado a junta.
Nos meses seguintes, em vez de perguntar as horas, Querida dizia à janela: "O meu cão, o senhor sabe por onde andará ele?" Como ninguém sabia, em vez de morto, o bicho tornou-se para Querida um fugitivo. Não tendo forças para imprimir os papéis de desaparecido, nem dinheiro para pagar a recompensa, esqueceu o ingrato do cão.
Um dia, a televisão também foi ingrata. Querida pôs-se à janela a berrar: "Jesus, acode a minha solidão". A televisão avariara. Alguém a acudiu com uma nova, por sua vez logo roubada. E a quem passava Querida dizia: "O desgraçado que ma levou tinha uma pistola do tamanho do mundo".
Depois é que partiu o resto dos dentes. A violência da queda quase levou, num único movimento de morte, a própria Querida, a casa onde ela habita, a memória do cão que existiu porque eu o conheci, e da televisão que talvez nem tenha sido roubada. Tudo quase desapareceu, tudo quase deixou uma única cicatriz entre os dois prédios onde habitara uma velha só.
Agora, Querida bem tenta perguntar as horas à janela. Mas sai-lhe uma ciciar muito fino, como se a própria voz tivesse sido suturada por um médico incompetente. Os transeuntes levam com cicios de cuspo. Uns limpam o cabelo com as mãos e apressam-se. Outros sorriem-se por atrapalho. E ninguém olha para o alto.
*Escritor