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Quem defende o rigor e a transparência na vida pública dificilmente pode estar descansado com o que se sabe da Spinumviva, a empresa da família de Luís Montenegro. A conta-gotas, os detalhes divulgados foram transferindo o caso de um cenário em que poderia haver apenas um risco potencial para uma situação de óbvio conflito de interesses. Montenegro deveria ter terminado esta ligação há muito, no exato momento em que se apresentou como candidato a primeiro-ministro.
Um chefe de Governo não pode ter uma porta escancarada para interesse privados. Apesar das muitas dúvidas, há duas evidências cristalinas sobre a empresa: na lista de clientes surgem setores dependentes de decisões diretas do Estado e os resultados financeiros são de tal modo anormais que justificam esclarecimentos adicionais. Passar a empresa aos filhos em nada contribui para resolver o problema: estamos ainda a falar da esfera de Montenegro e de clientes por si angariados. A somar à trapalhada política, resta ainda saber onde poderão conduzir as denúncias enviadas ao Ministério Público e à Ordem dos Advogados.
Dizendo querer clarificar a situação e interromper o ciclo vicioso de desconfiança, “sem manobras táticas”, o primeiro-ministro fez exatamente o inverso: continua a ser sobranceiro em esclarecimentos e escolhe o jogo político. Depois do que parecia uma manobra arriscada, aceita a cobertura dada pela censura do PCP e alimenta um discurso dúbio sobre a moção de confiança. Na aparência de evitar uma crise política, mantém o seu Governo a queimar em lume brando e o país num desconfortável pântano.
Feitas as contas, temos um primeiro-ministro com negócios que conflituam com a sua missão, um PSD que não esconde o incómodo com a inesperada crise e um presidente da República irritado, mas mais parco em palavras do que lhe é habitual. Infelizmente, também do lado da Oposição são óbvias as fragilidades. Pedro Nuno Santos tardou em tomar as rédeas da situação e assistimos a divergências públicas sobre a estratégia a seguir pelo PS. A atividade política, que tanto precisa de recuperar confiança, sai debilitada em toda a linha. E quando as instituições e os seus líderes dão tiros nos pés, é a democracia no seu todo que perde. Os ventos de populismo que sopram de tantas direções exigiriam que quem está na política fosse capaz de melhor.