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O constitucionalista Jorge Miranda considerou que os projectos de revisão apresentados pelos partidos irão "complicar" a Constituição da República, tornando o texto fundamental "ainda mais extenso". Ora, se a nossa Constituição é extensa, e pejada de virtuosos mas virtuais direitos, a culpa é, em larga medida, dos seus autores. Em abono da verdade, há que reconhecer que era a Constituição possível em 1976. Na sua origem, e por razões históricas consabidas, assemelhava-se ao programa eleitoral de Allende, mas era sem dúvida dotada de uma linha condutora coerente. Depois, através das várias alterações que lhe foram sendo introduzidas de forma pouco hábil e sempre envergonhada, para lhe tentar retirar uma parte do seu conteúdo ideológico, passou a ser um documento mentiroso, inconsequente e pretensamente perpétuo, eivado de securitarismo e sobrecarregado de artigos abstractos e contraditórios, a que os partidos de Esquerda recorrem quando lhes convém para impedir, adiar ou contrariar qualquer reforma.
A mentira começa no artigo 5.º, que reclama que "o Estado não aliena qualquer parte dos direitos de soberania", o que não se coaduna com os compromissos que assumimos junto dos nossos parceiros europeus. Além disso, nem os seus autores e defensores podem decerto acreditar que a República que temos esteja empenhada na estruturação do Estado nos moldes em que fala. O artigo 6.º, por exemplo, garante que "o Estado respeita na sua organização e funcionamento os princípios da subsidiariedade, e da descentralização democrática da administração pública" o que é seguramente falso, enquanto o artigo 9.º assegura que o Estado deve "promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional", afirmação que nem valerá a pena desmentir.
A irracionalidade da norma fundamental é bem ilustrada pelo seu Preâmbulo anacrónico, em que se continua a ler que o povo português decidiu "abrir caminho para uma sociedade socialista" o que não corresponde às escolhas livres que temos feito em sucessivos actos eleitorais, e pelo capítulo reservado aos direitos e deveres económicos, em que se afirma, logo de início, "que todos têm o direito ao trabalho", o que apesar da natureza da norma em questão não permite iludir a indefinição de critérios e a insuficiência dos instrumentos destinados a garantir esse direito. Por outro lado, é um documento que se assume e reclama como perpétuo, porque o seu artigo 288.º (Limites materiais da revisão) impõe que esta tenha de respeitar, entre muitas exigências ultrapassadas e de pendor ideológico, "a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista", o que não faz sentido numa ordem constitucional que relativizou a relevância do planeamento económico e social.
Desde a sua aprovação, o Mundo mudou e Portugal foi fazendo as suas opções, aceitando as regras de jogo da União Europeia. Ao fim de todos estes anos, a Constituição envelheceu mal, à custa de transplantes conjunturais e de implantes oportunistas e, em rigor, e por muito que isso ofenda a tutela reaccionária de Jorge Miranda, o seu texto remendado já não nos serve, sejamos nós de Esquerda ou de Direita. Precisamos de um novo texto fundamental, liberto de condicionalismos e anacronismos históricos, que retrate o que somos e que, equilibrando os direitos de cidadania com os deveres que lhe são inerentes, deixe à sociedade de hoje a possibilidade de determinar o seu futuro, através da legitimação das escolhas eleitorais, permitindo que o país avance e se modernize, livre das peias ancestrais dos seus inventores.