É expectável que quem tem sobre as costas riscos como o de colapso do sistema financeiro analise com minúcia cada décima, cada curva estatística, cada nuance na origem de uma nova decisão sobre o aumento das taxas de juro.
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Antes de usar palavras como insensibilidade ou frieza, há que acreditar que quem determina políticas com reflexo na vida de milhões de pessoas pensa exatamente nesses efeitos - reais ou potenciais. E, ainda assim, custa a aceitar o tom absolutamente cinzento com que Christine Lagarde, na cegueira da receita seguida pelo Banco Central Europeu (BCE) para combater a inflação, exorta a que os governos da Zona Euro comecem "rapidamente" a reduzir os apoios concedidos às famílias e às empresas.
A escalada nas taxas de juro não surtiu nenhum efeito relevante sobre a inflação. Até porque o contexto global teve na origem uma guerra com efeitos imediatos no setor energético e alimentar, ampliados por fenómenos especulativos. O debate a que temos assistido em relação às cadeias de distribuição é um bom exemplo do extremismo ideológico com que o tema é encarado. De um lado estão os que ridicularizam as denúncias de especulação e os ataques ao livre funcionamento do mercado; de outro, os que gritam contra o "roubo" generalizado dos supermercados e exigem mão de ferro às autoridades e ao Governo.
Se deixarmos de lado os fervores ideológicos, as duas visões são em boa verdade compatíveis. Temos dados suficientes para concluir que tem havido práticas abusivas e margens inaceitáveis nalguns produtos, sendo essencial manter uma fiscalização atenta e práticas de autorregulação eficazes. O que, ainda assim, não deve servir de desculpa ao Governo para se descartar de medidas mais ativas para suavizar os preços, seja por via fiscal ou optando por apoios à produção, seguindo exemplos de outros países ao nosso lado.
Políticas cegas para travar a inflação não têm efeitos garantidos e não é admissível que sejam seguidas com alheamento da situação dramática das famílias. Como se fosse possível tratar a saúde da economia matando, de caminho, o doente. Os dados do último barómetro da Deco revelam que três quartos das famílias têm dificuldade em pagar as contas e 44% sentem limitações para pôr comida na mesa. O primeiro-ministro promete anunciar novas medidas de apoio esta semana. Que tenha a coragem de ignorar os apelos inflexíveis da presidente do BCE.
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