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As viagens pagas a políticos e altos funcionários do Estado tornaram-se uma das novelas deste verão. Tivemos a primeira temporada com as viagens dos secretários de Estado e deputados aos jogos da seleção nacional de futebol a expensas da Galp. Seguiu-se a sequela com responsáveis da saúde e alguns autarcas a visitarem o gigante chinês a convite da Huawei e da Nos e agora já estamos na terceira temporada, que tem como protagonistas a Microsoft e vários autarcas.
Desde o primeiro episódio considerei o enredo pífio, porque transformava um costume (a oferta de viagens no futebol) num súbito crime capaz de lançar as suspeitas sobre a integridade de governantes. Mas é um sinal do tempo, que corre em polémicas fáceis, de indignação com as elites e com os políticos, numa sociedade em que a inveja e o ressentimento ganharam estatuto de ativismo cívico.
Os políticos têm dificuldade em resistir a estes impulsos e António Costa não foi exceção, criando um estatuto draconiano para ofertas que, a posteriori, condenava os seus secretários de Estado. Depois vieram os inquéritos, tão ao estilo de um Ministério Público voraz de mediatismo, seguiram-se as demissões e agora continuam as investigações que, estou convencido, darão em nada ou coisa nenhuma.
Mas estava aberta a caixa de Pandora e a sequela não tardou, agora em torno de empresas tecnológicas e de convites feitos a técnicos e responsáveis políticos. A estupidez aprofunda-se. Sempre existiram viagens oferecidas por empresas para mostrar soluções tecnológicas, quer a empresas públicas, quer a privadas. São momentos de recolha de informação e obviamente momentos de relações públicas. São prática corrente em todo Mundo, mas em Portugal transformaram-se num anátema, obrigando a explicações qualquer um que tenha feito viagens nos últimos tempos.
É certo que em organismos públicos estas viagens devem ser feitas com toda a transparência e segundo regras bem definidas. Mas cumpram-se os procedimentos e não se façam julgamentos preconceituosos. É uma ilusão dos que apontam o dedo acusador acreditar que é aqui que se tecem as malhas da corrupção. Esta intolerância perante o visível só ajuda a esconder o que apenas na sombra encontra caminho.
Se a incapacidade de chegar a compromissos, como lembrei na semana passada, é o caminho certo para uma sociedade pobre de ideias, a desconfiança militante em relação aos governantes e às elites é um gerador de cinismo que corrói o sistema de representação que é a democracia.
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