Urbanizar Sem Lucro: A decisão política que falta para resolver a habitação
A crise habitacional portuguesa tornou-se estrutural. O preço do solo urbano tem sido inflacionado por processos de valorização fundiária que resultam sobretudo da transformação administrativa de solo rústico em urbano. Esse diferencial, capturado quase sempre por agentes privados, empurra famílias para fora dos centros e colide com o princípio constitucional do direito à habitação.
Corpo do artigo
Durante décadas, o padrão de crescimento assentou numa expansão periférica frequentemente desarticulada. Mais tarde, o Regime Excecional da Reabilitação Urbana (RERU) simplificou processos, reduziu fiscalidade e canalizou investimento para os centros históricos, com resultados visíveis na reabilitação do património e na vitalidade urbana. Hoje, o bloqueio central é outro: há escassez de terrenos urbanizados disponíveis para construir a preços compatíveis com os rendimentos das famílias.
Exige-se, desde já, mais terrenos, sendo essa a condição que desbloqueia tudo o resto. Não há habitação acessível sem lotes prontos a construir, bem localizados e com regras claras. Abrir solo em zonas periféricas ou mal servidas não resolve. É preciso garantir terrenos junto a emprego, serviços e transportes e, sobretudo, assegurar que o ganho da valorização fundiária não é apropriado apenas por privados, mas reinvestido em habitação, equipamentos e mobilidade.
Paralelamente, é necessário um novo enquadramento legal. O Decreto-Lei n.º 117/2024 (em vigor desde janeiro de 2025) reformulou profundamente a Lei dos Solos e permite aos municípios reclassificar solos rústicos para uso habitacional, exigindo que pelo menos 70% da área construída se destine a habitação pública/a custos controlados/arrendamento acessível, respeitando limites de sustentabilidade (REN, RAN, especial aptidão agrícola, entre outros). É um passo decisivo - porque descentraliza e agiliza -, mas insuficiente se não for acompanhado de uma regra que feche o circuito da mais-valia fundiária: a exclusividade municipal na transformação do solo para fins de habitação acessível.
Recorde-se que em Portugal já houve contratos de planeamento que converteram solo agrícola em parques industriais, com prazos, contrapartidas e responsabilidades bem definidos - Guimarães é um exemplo claro. O que se propõe agora é estender essa lógica à habitação. Além disso, cidades europeias como Viena, Copenhaga, Zurique e Berlim também já utilizam modelos que têm como base o controlo público da transformação do solo, a captura de mais-valias para o interesse coletivo e a mistura social como critério de desenho urbano.
O que se propõe é um regime inspirado no RERU para habitação acessível, assente em três pilares. O primeiro é a exclusividade municipal na transformação fundiária, fixando o valor do lote apenas no custo de aquisição e urbanização, sem margem de valorização fundiária. O segundo é a distribuição 20/40/40: 20% da área para equipamentos, 40% para habitação acessível em direito de superfície e 40% para construção privada, vendidos em hasta pública, com regras urbanísticas e prazos de construção obrigatórios. Por fim, incentivos fiscais direcionados: IMI, IMT e IVA reduzidos e deduções em IRS para arrendamento acessível.
Não se pede uma revolução jurídica: basta adaptar os mecanismos já consagrados em operações industriais/logísticas para fins de habitação acessível. Sublinhe-se que este modelo, com impacto social e ambiental alto, tem ainda forte alinhamento com instrumentos europeus como o InvestEU e o BEI. A lógica é simples: o município capta valor e recicla-o em habitação, com custos de capital reduzidos e maior agilidade na entrega de fogos.
Concluindo, Portugal dispõe de base legal - que depende apenas de uma alteração simples -, precedente nacional e referências europeias suficientes para lançar, no curto prazo, programas de habitação a preços justos, mas falta a decisão política. Tal como o RERU inaugurou a década da reabilitação, este regime pode inaugurar a década da integração social: bairros completos, mistos e sustentáveis, onde a habitação volta a ser um direito e não um privilégio.