Todas as épocas tiveram a sua "utopia" e, consequentemente, a sua "cidade ideal". Da antiguidade clássica até aos nossos dias, muitas foram as formulações que tentaram corresponder ao conceito de Aristóteles para quem "uma cidade é uma assembleia ou comunhão perfeita e absoluta de muitas povoações ou ruas numa só".
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Da "Atlântida", de Sólon, e da "República", de Platão, passando pela "Cidade Romana", de Vitruvio, pela "Cidade do Sol", de Tomás Campanela, pela "Utopia", de Thomas More, pelas utopias sociais novecentistas de Owen e Fourier, pelas formulações contemporâneas de "Broadacre City", de Frank Lloyd Wright, e da "Cidade com três milhões de habitantes", de Le Corbusier, até à mais contraditória e perversa de todas as utopias - porque realizada em quase todos os cantos do Mundo - que foi a "Carta de Atenas", cuja realização mais emblemática é a moderna Brasília, o Mundo viu sucederem-se em todas as épocas e em todas as latitudes modelos de organização espacial para que a felicidade dos homens pudesse, afinal, ter um lugar na terra. E porque a "utopia" não é mais do que a busca desse modelo de felicidade, todos continuamos, ainda hoje, em busca da nossa própria "cidade ideal".
Contudo, a "cidade real" de todas as épocas, mal-grado a distância que a separa da "cidade ideal" de todos os tempos e apesar da sua ainda incomensurável imperfeição, continua a ser a mais extraordinária criação do homem, o que faz da "cidade que temos e que é a nossa" o lugar onde o sentido de comunidade assume a sua maior e mais sublime expressão. Por isso, e salvas as devidas distâncias, de tempo, lugar e ambição, todas as cidades continuam, incessantemente, em busca da sua própria identidade, ou seja, em busca da sua "utopia".
Aparentemente, e para nossa infelicidade, não temos dado passos muito significativos na direcção certa e, no terreno, continua a assistir-se a pouco mais do que ao confronto das duas clássicas correntes de opinião - que não de pensamento - sobre o que são os modos de encarar a cidade e que passam por olhá-la, apenas, do lado do "verde" ou do lado do "betão". Nada, porém, mais pobre do que esta já tão esgotada dicotomia que, no essencial, são, em si mesmos, a negação do próprio conceito de cidade. Com efeito, olhar a cidade através dos olhos raiados de cifrões que o "betão" proporciona, ou olhá-la com a nostalgia da paz dos campos, são visões por de mais redutoras. Isto mesmo compreendeu Oriol Bohigas, um dos nomes maiores da arquitectura contemporânea e um dos artífices do "milagre de Barcelona", quando propôs que o renascimento da sua cidade e das cidades em geral ultrapassassem a teia que "ruralistas" e "vialistas" lhes têm engendrado desde que a "Carta de Atenas" se transformou na "bíblia" da cidade moderna. Ou seja, a cidade do futuro teria de se libertar de dois preconceitos que têm sido o ponto de partida e de apoio do modo contemporâneo de fazer cidade: o preconceito "ruralista" para o qual a cidade só o será verdadeiramente quando privilegia os valores da ruralidade, assim como o preconceito "vialista" que encara a cidade como um complexo de vias de trânsito nos interstícios das quais crescem as casas e os espaços verdes, assim esmagados entre o alcatrão e o betão. E foi contra estas duas visões castrantes e destruidoras duma verdadeira cultura de cidade que Bohigas propôs que o habitante da cidade do nosso tempo se assumisse, sem preconceitos, como o verdadeiro "urbanita" da "cidade real" que, assim, se torna mais próximo da "cidade ideal" ou "utopia" que procuramos.
É que, na realidade, há muito mais cidade para além do "verde" e do "betão".