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Na última crónica de 2016 é impossível escapar ao que nos aconteceu nestes 12 meses, durante os quais fomos confrontados com uma nova experiência no nosso regime democrático, sustentada com mestria nas ambiguidades de uma Esquerda que sempre renegou o que agora aceita e na busca exaustiva de consensos pelo presidente dos afetos.
Durante os anos duros da troika, que obrigaram a governar em clima de exceção, mas que permitiram ao país ganhar de novo a sua dignidade e liberdade de acesso a financiamento externo, vivemos quase sempre em clima de forte tensão social, em que tudo e mais alguma coisa foi contestado, com a ação governativa alvo de boicote permanente por parte das estruturas sindicais e grupos organizados da mais diversa índole e proveniência, alimentados pelo lóbi mediático do "quanto pior melhor". Apesar de tudo o que acabamos de descrever, de termos descido a limites impensáveis, conseguimos resistir, levantar a cabeça e começar de novo a crescer. Os cortes salariais iniciados ainda no Governo Sócrates foram interrompidos, mas com uma perspetiva da sua recuperação integral num período completo de legislatura.
Perante tudo isto é óbvio que a recuperação integral de salários em apenas um ano e não em quatro, acompanhada de mais uma mão-cheia de pequenos ganhos individuais, permitiu distender muito o clima social vivido até final de 2015. O megafone reivindicativo da educação gripou como que por encanto. As greves por tudo e nada mais e as manifestações temáticas de gerações à rasca também se acalmaram por magia e muito afeto.
Finalmente, qual cereja em cima do bolo, a inteligência superlativa e faro político do novo presidente permitiram uma forte amplificação do fenómeno da democracia direta, dos carrinhos de choque que o povo adora, à continuidade do teatro de uma específica elite da corte.
Tudo com um ar de desdém, ou mesmo desprezo e crítica feroz, para aqueles que se atrevem a questionar como é que vamos ultrapassar os problemas de um crescimento pior que o de 2015, da forma estranha de controlo do défice e da anunciada diminuição de compra de dívida pelo BCE.
Um dia a realidade será inevitavelmente mais dura do que as nossas cabeças. Mas logo encontraremos um culpado externo para mais uma desgraça. Até lá será bonita a festa - e siga a rusga.
A inteligência superlativa e faro político do novo presidente permitiram uma forte amplificação do fenómeno da democracia direta, dos carrinhos de choque que o povo adora, à continuidade do teatro de uma específica elite da corte.
* PROFESSOR CATEDRÁTICO DA U. PORTO