A semana europeia teve episódios típicos de novela mexicana. Não fique enxofrado quem aprecia novelas mexicanas ou quem as produz: apenas me refiro às ditas porque são associadas ao drama e a frases muito carregadas de emoção.
Corpo do artigo
Por falar em emoções, comecemos pela "pena". O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schaüble, afirmou que tinha pena dos gregos, porque "escolheram um Governo irresponsável". O nosso Wolfgang (desculpem a ternura), pelo que diz e tem dito de tudo o que mexa de Berlim para baixo, tem pena? Só se for a pena de Drácula antes de enfiar os dentes num pescoço de donzela, ou, olhando ao conteúdo da pena, só se for a que um de nós sentirá depois de pisar a cauda de um caniche ao vê-lo aos saltos, com o olhar indignado (por uma questão de rigor, não estou certo sobre a existência deste apêndice nos caniches). Aliás, Wolfgang tem pena, tanta pena, que deserdou os gregos, esses perdidos no sul do sul, e deu mais uma medalha aos portugueses, cada vez mais bem comportados.
Os gregos, esses, foram exigindo que se respeitasse a sua dignidade, e o atual primeiro-ministro fez campanha, no essencial, sob esse mote: recuperar a dignidade do seu povo. Muito bem, devo dizer. A recuperação da dignidade é sempre um propósito louvável, por onde que ela ande perdida ou se tenha perdido algures no labirinto dos juros, dos resgates, dos empréstimos, das troikas que a cada um cabem, dos ultimatos muito técnicos e dos pibes de que todos nos tornámos especialistas.
Ninguém ligou demasiado a esta reivindicação, o que mostra bem como estamos anestesiados de slogans e da palavra excessiva, ao ponto de termos deixado de ver o que grita à frente do nosso nariz.
Mas ainda não chegava de coisas atípicas.
Por um destes dias que andam verdadeiramente surpreendentes, Juncker, o presidente da Comissão Europeia, decidiu dar um ar da sua graça. Se Wolfgang podia, não podia menos Jean-Claude. Se um alemão pode, por que não poderá um luxemburguês? E vai daí...
Ouçamos Jean-Claude: "Pecámos contra a dignidade dos povos, especialmente na Grécia, em Portugal e também na Irlanda". Chega? Não chega, continua: "Eu era presidente do Eurogrupo e pareço estúpido em dizer isto, mas há que retirar lições da história e não repetir os erros". Chega? Não, Jean-Claude continuou a abrir o coração, naquela pulsão em que o pecado precisa de se confessar para tentar chegar ao perdão que se foi: "a troika é pouco democrática, falta-lhe legitimidade democrática e devemos rever essa questão quando chegar o momento".
Portugal, através do ministro Marques Guedes, reagiu aborrecido, porque de outra forma estaria a assumir o protagonismo de quem tinha sido desrespeitado e humilhado por um trio que de vez em quando desembarcava por cá, três pastas e três fatos sóbrios e três cérebros que, depois da conversa, davam conferências de Imprensa em que nos desancavam e anunciavam ao Mundo que tinham tido que se aborrecer com aqueles que, para o bem e para o mal, pareciam os seus empregados.
Portugal, falando a uma só voz, interveio também através do ministro dos Negócios Estrangeiros. O a uma só voz é bom clarifica-lo, quer neste caso significar uma voz de cada vez. Porque Rui Machete disse, afinal, muito diferente do seu colega. Porque, afirmou, a ser verdade aquilo de que se penitenciara Jean-Claude, o Estado português não deixaria de exigir reparações. A quem, pergunta-se? À troika. A questão fica juridicamente deliciosa porque a exigência de reparação, com propriedade, só faz sentido no caso de comportamentos internacionalmente ilícitos. Ficamos, ao menos, com um caso revolucionário na prática internacional. Aquele que podia ter lesado, culpa-se por ter pecado. Aquele que podia sentir-se lesado, diz indignado que ninguém o lesou (Marques Guedes). E aquele que podia sentir-se lesado, diz que a afirmação de culpa não devia ter sido proferida mas que, a ser verdade, vai ter que ser paga (Rui Machete).
Confusos? Não vale a pena, é só mais uma semana europeia.
Fosse isto uma crónica de sociedade, e garanto que terminava com um "ui, queridos, isto anda bonito!...". Mas, de facto, não é uma crónica de sociedade. Por isso, terá que chegar um "Valha-nos Deus!". Para quem for crente, claro.
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO