A última vez que nos vimos foi na Universidade do Porto, em 7 de Março, no seu doutoramento <em>honoris causa</em>. Subo as largas escadas de pedra, como nas milhentas vezes de outros tempos, e vejo VGM no patamar de cima, vai numa cadeira de rodas a caminho do salão nobre. Estremeço, alguém já mo tinha dito, mesmo assim estremeço, curvo-me e cumprimento-o como se fosse ontem que nos cruzámos naqueles preparos: que bom vê-lo, digo eu, obrigado por ter vindo, não era preciso, diz ele. VGM entra no recinto, roda a cadeira devagar, vai até à fila da frente onde o ajudam a passar para a cadeira da ordem. Quando chega o momento protocolar, VGM levanta-se e vai sozinho, direito, honrado, impressionante, consigo vai o justo orgulho de uma vida inteira, connosco fica o receio de ele se sentir desamparado na travessia da dezena de metros, nos degraus, ou na formidável postura durante a longa cena das insígnias e da fala doutoral.
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Razões de saúde, começa assim VGM o seu discurso em pé, digno, esforçado, com meio sorriso na cara vincada, agora mais vincada do que nunca, marcada pela maior luta de sempre, ele que fora um fantástico lutador por ideais, pela liberdade culta, pela língua portuguesa (VGM: o acordo ortográfico é barbaridade, é torpeza). Pensador, articulista, polemista, ensaísta, escritor, excelente tradutor de clássicos. Premiado tantas vezes. Político, europeísta - a UE não o ouviu como devia. Poeta. Um dos nossos maiores poetas do século XX, dealbar do século XXI, segundo dizem conhecedores, que subscrevo. Todavia, a respeito de Portugal concreto, dos problemas políticos e sociais, das questões da cultura, das questões europeias, dele ninguém dizia "é um poeta", no sentido vulgar e condescendente de sonhador ou utópico. Realista, frontal, elegante, profundo, implacável, demolidor, senhor de boa escrita, tripeiro de gema (1942), dizia o que tinha a dizer, escrevia na maré, vazasse ou enchesse, e não se dispensava de ser o cidadão que exerce o direito de intervenção como um dever oportuno e diletante. E, simultaneamente, escalava alturas e mergulhava profundezas do pensamento, abraçava os temas mais exigentes e perenes, deles fazia escrita reflectida e laboriosa, por modos e estilos de que muito poucos são capazes. "VGM o génio da minha geração" é título de um amorável e memorável texto de Miguel Veiga, 2012: Único mas múltiplo, singular mas plural, (...) arre, que tem talento a mais! Chega a irritar tanto talento!.
Naquela manhã de sol de fim de Inverno, VGM discursa numa voz forte e suave que quase vacila, mas não vacila nem esmorece, voz de quem sabe que está fraco de forças físicas mas não de ideias, nem de valores, nem de amizades, sabe que alguns, dos muitos que não puderam vir, ali estão para lhe dar o abraço da maior admiração. E ele ali está, muito acima das adversidades, com humildade e grandeza. Nos cumprimentos de fecho, não lhe estendo a mão nem os braços, porque num impulso, inédito, beijo na face VGM como se faz a um irmão, nem sei bem o que lhe dizer em breves e descosidas palavras. Sei que, naquela hora, a "lâmpada votiva" de VGM me envolve intensamente, de novo. A outra vez fora há uns dez anos, quando pedi a VGM que me permitisse recompor excertos do belíssimo poema que ele escrevera pela morte da sua mãe. Mais lhe pedi, que me deixasse dedicar o poema a meu pai, bastariam uns toques, porque havia uma comovente similitude de situações. E assim foi, está publicado em nome de VGM numa pequena antologia de poemas da minha vida. A morte do meu pai fora inesperada, dilacerante, já lá vão muitos anos. Fiz a viagem de noite e encontrei-me com a mãe e os irmãos, senti o afecto de todos, em lágrimas uns, em secura outros, acariciei e beijei a face fria do pai, fizemos o funeral e depois, ao regressar, não me libertava de ver que as coisas do Mundo seguiam indiferentes como se nada, absolutamente nada, tivesse acontecido:
virão dias, semanas, meses, anos,
e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.
Depois da notícia da sua morte, reabri alguns dos livros de VGM. Em nome de todos, cito "Páginas do Porto" (2001), porque tem para mim o sabor de um auto-retrato extraído das raízes e porque, além do mais, às raízes retornam as suas cinzas. Peço ao leitor para ajuizar os sentidos deste trecho de VGM, ele perdoar-me-á as intrusas alíneas:
Há traços da minha escrita que eu gostaria de atribuir a essa origem: cada vez mais a) uma preocupação de inteligibilidade prática e directa, b) uma poética a que não me repugna chamar "do prosaico", c) uma certa persistência burguesa de confinamento, ao mesmo tempo íntimo e ostensivo, ao "meu" mundo, d) um certo gosto por coordenadas de um realismo elementar e pela acção eficaz, e) um certo humor citadino, uma certa valorização do quotidiano e do espontâneo, f) um livre culto do desassombro e mesmo da insolência, g) bem assim como vestígios de emoções, alvoroços, entusiasmos e memórias densamente ligadas aos trinta e muitos anos que no Porto vivi.