Baltazar Garzón, o «super juiz» espanhol que se tornou herói para os justiceiros de todo o mundo, acabou, ele próprio, por cair nas malhas do seu fundamentalismo e está, agora, a contas com a justiça, acusado de prevaricação em três processos instaurados pelo Tribunal Supremo de Espanha. Em consequência, acabou por ser suspenso das suas funções, tendo ido trabalhar para o estrangeiro, sintomaticamente, como assessor do Ministério Público no Tribunal Penal Internacional.
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O caso mais controverso tem a ver com a decisão que tomou em Outubro de 2008 de se declarar processualmente competente para investigar os crimes do franquismo durante e após a guerra civil de Espanha (1936-1938). Setenta anos depois do episódio mais traumático da história espanhola, um juiz decide acusar os principais dirigentes de uma das partes em conflito de levar a cabo um plano de extermínio da outra parte.
Na sua insólita decisão, Baltazar Garzón ordenava que fossem identificados os dirigentes máximos da Falange Espanhola entre 1936 e 1951, autorizava várias exumações que lhe tinham sido solicitadas por associações de vítimas do franquismo e determinava a formação de uma equipa policial para aceder a registos públicos e privados a fim de obter informações.
Durante a guerra civil, houve um general franquista que, sob o delírio assassino do ódio belicista, fizera uma proclamação do género: «por cada nacionalista morto matarei dez «rojos» (designação com que, genericamente, os franquistas se referiam aos republicanos), nem que tenha de desenterrar alguns e voltar a fuzilá-los». Salvaguardadas as devidas distâncias e proporções, o processo contra o franquismo, originado pelo vedetismo compulsivo de um juiz, ia no mesmo sentido, ou seja, «desenterrar» os mortos de uma das partes para os submeter ao julgamento maniqueísta dos descendentes da outra.
Garzón, que chegara a ser ministro de um governo socialista, violava, assim, ostensivamente, a lei de amnistia que constituíra um dos pilares da transição da ditadura para a democracia e ignorava que, hoje, o único julgamento possível dos crimes do franquismo só pode ser político e nunca judicial.
Outro dos processos instaurados a Baltazar Garzón, relaciona-se com a sua decisão de mandar escutar e gravar as consultas de advogados com arguidos presos, numa tentativa de os incriminar por alegada cumplicidade com os seus clientes. Tratava-se de um processo de corrupção que envolvia figuras de relevo do Partido Popular (o principal partido de oposição aos socialistas no poder) e as escutas baseavam-se, aparentemente, numa lei que autorizava esse procedimento apenas quando estivessem em causa crimes de terrorismo. Movido pelo mais primário fundamentalismo, Baltasar Garzón não hesitou em violar a legalidade e espezinhar uma das mais importantes prerrogativas profissionais dos advogados, ou seja, a de poderem conferenciar em privado com os seus constituintes.
Por fim, o terceiro processo tem por base o financiamento de dois seminários sobre direitos humanos organizados por Baltazar Garzón na Universidade de Nova Iorque em 2005 e 2006. Para custear esses cursos (incluindo as despesas relativas aos seus honorários), o juiz pediu apoio financeiro ao presidente do banco Santander, Emílio Botin, a quem, numa carta que lhe dirigiu para o efeito, tratava por «Querido Emílio» e, no final, saudava com «um grande abraço». Sucede que alguns meses depois, Baltazar Garzón arquivou um processo crime, precisamente contra o presidente desse banco e sem se preocupar com as suspeitas que a sua actuação poderia suscitar na opinião pública.
Não se sabe quais serão as decisões finais desses processos, mas é possível, desde já, admitir que a sua carreira como juiz terá chegado ao fim ou, pelo menos, não voltará a ter o mesmo fulgor mediático. No mundo dos tribunais, o vedetismo judiciário e o fundamentalismo justiceiro são, em regra, sintomas de degenerescência moral dos magistrados. O vedetismo conduz quase sempre ao fundamentalismo e este, inexoravelmente, àquele.
Tal como nos jogos de futebol, também nos tribunais quando um juiz dá nas vistas, quase sempre é por maus motivos.