Não, as pessoas não se importam com as pessoas quando sentem o poder nas mãos, raramente retiram a máscara dos interesses e raras são as excepções. Passe a generalização que acabei agora de excepcionar. Danados, eles são um caso específico! E acabam, normalmente, por subtrair o menos bom ao mau, agudizando o que continua a ser péssimo nos tempos que correm. A ilusão de que as pessoas que nós elegemos serão os fiéis zeladores dos nossos empréstimos emocionais e da vontade maioritária do seu eleitorado votante é uma ideia na qual já ninguém acredita, caiu em desuso implodida pelos factos, demolida nos seus pontos nevrálgicos, desacreditada pelo que, por vezes, até parecem ser erros de cálculo ou fruto da má capacidade de comunicação por parte dos narradores do poder vigente.
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Acontece que não há erros de cálculo e, quando há dúvidas - parafraseando António Guterres -, é só fazer as contas... Tomemos então um exemplo de conta-corrente: quando o Governo nos diz, por várias vezes e em vários momentos, por distintos porta-vozes, que devemos pensar na emigração como uma oportunidade, devemos pensar o quê? Que há um erro de cálculo ou de comunicação na mensagem? Que, no fundo, há uma réstia de verdade na argumentação? Que na falta de bom senso, as boas intenções prevalecem? Desenganem-se os crentes. Há uma réstia de verdade em tudo quando se acredita pela fé. Eles querem dizer mesmo aquilo e não se importam nada de nos indicar a porta de saída. Com tanto desemprego, pensam eles, estamos é sobrelotados.
Páginas tantas, penso se quem nos governa é eleito por sufrágio universal ou por sofrimento colectivo. A vocação para mártir em nada se confunde com o exercício do sacerdócio. Nada há de martirizante na dádiva, na entrega da vida às mãos de algo maior, na rendição perante o desígnio, na vontade de servir sem contabilizar o retorno. Mas que sufrágio é este se vivemos mártires das nossas escolhas, como se permitíssemos ao sacerdote pregar na homilia uma versão fantasiosa do "tomai e bebei todos", acrescentando, "mas não todos pela mesma medida".
Fundamentalmente, questiona-se a coesão social, veículo indispensável para um Estado democrático e solidário. A denominada "política de coesão", nacional e comunitária, objecto das maiores parangonas e disfarces "read my lips" dos protagonistas políticos do burgo, essa mesmo. Aquela que emoldura as paredes de Bruxelas no pacto da "Política de Coesão 2014-2020". Nunca assistimos a um ataque tão feroz, tão desmedido, tão ultraliberal à coesão nacional como este Governo protagoniza. No agravamento das assimetrias regionais, na resistência à subida do salário mínimo, na displicência perante o envelhecimento do país e na indiferença perante os mais velhos, no voto de emigração para os que ainda podem levar mala, na pressão fiscal sobre os mais pobres e classe média, no voto de castidade para os sacrossantos banqueiros das prescrições, no discurso da divisão. Uma classe política que despreza a coesão social é uma fornada de eleitos para o enterro da democracia e o ressurgimento de um país em negação.
É exacta a "cultura de prepotência" com que Pacheco Pereira, historiador e militante histórico pós-maoista do PSD, caracteriza este Governo. Ele sabe do que fala quando afirma que "quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril". Quando caracteriza a visão actual dos "salários e ordenados como uma benesse" à semelhança dos tempos da ditadura mais longa da história da Europa no século XX, Pacheco Pereira põe o dedo na ferida da social-democracia, tal qual ela é hoje. Justiça lhe seja feita. O poder que temos não pode com as pessoas a mais, não admite pessoas em excesso. Nada com conforto ao largo da taxa de natalidade ou do envelhecimento precoce. É um poder político de rendição ao poder financeiro, de um país outrora à beira-mar plantado mas agora submerso pelas taxas de juro, submisso aos mercados. Este Governo que se "descoligou" por várias vezes, já se desligou há muito dos portugueses, já colidiu de frente connosco. No presente, a coesão social é uma forma elementar de conjugar um verbo de encher.