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Depois dos benefícios fiscais às facturas de certas actividades, o Governo prepara-se para fazer, regularmente, sorteios entre todos aqueles que tenham pedido facturas e associado às mesmas um número de contribuinte. O objectivo, já se sabe, é combater a evasão fiscal. Não é uma ideia original. Se o Governo a vai experimentar é legítimo concluir que, nos países em que foi aplicada, os resultados terão sido positivos. É o caso do Brasil que já recorre a este expediente faz anos e em que os estudos efectuados concluem pela sua eficácia, nomeadamente por comparação com outros instrumentos como os próprios benefícios fiscais (Ricardo Reis dava conta disso mesmo no Dinheiro Vivo de sábado passado).
Há quem não concorde, não pelos resultados mas pelo instrumento, em si. A necessidade de se recorrer a tal mecanismo pode ser lida como reveladora de imaturidade cívica. Se a emissão de facturas fosse uma prática natural das empresas, ou pedi-las um hábito do comprador, esta iniciativa seria redundante. Sabemos que (ainda) não o são. Por isso, mesmo que discutível no plano ético, sejamos optimistas e admitamos ser este um caminho para que essas outras práticas se entranhem, mesmo se, por agora, se estranham. Acresce que, por comparação com o "terrorismo fiscal" de que tanto se ouve falar, este expediente, ao actuar do lado dos incentivos, é bem mais simpático.
As minhas críticas são outras. Em primeiro lugar, como este Governo nos habituou, esta é uma medida avulsa. Mais do que os prémios que, por maior que seja o seu número, apenas beneficiarão um pequeno número de contribuintes, interessava saber o que o Governo pretende fazer se o programa for bem-sucedido, isto é, se houver um aumento significativo na arrecadação de receita. Vai ficar com o euromilhões para si ou pretende distribuí-lo, mesmo que não equitativamente, pelos contribuintes, por exemplo baixando o IRS, ou o IVA, ou...... Há uma lógica ou esta é apenas uma batata e tudo se resume a mais um subterfúgio para aumentar a receita?
Que falta essa visão parece-me óbvio quando se fala na hipótese de sortear automóveis. Sabe-se que os portugueses são doidos por popós e que a simples hipótese de ganhar um porá muita gente senão a salivar, pelo menos a pedir a facturinha como é objectivo do Governo. Não pode valer tudo! Num governo tão zeloso na promoção da frugalidade, a ideia de sortear automóveis é estapafúrdia, um sinal de incentivo ao consumo quando se esperaria que a poupança fosse privilegiada. A contradição não acaba aqui. Tratando-se de um produto importado e sabendo-se que um dos nossos problemas foi, e será, o défice comercial externo, não se pode dizer que o Governo esteja, mais uma vez, a dar um bom exemplo. Para que os comerciantes de automóveis não julguem que tenho alguma coisa contra eles, digo já que a minha ideia é que o Governo não deve sortear produtos, mas dinheiro ou, quando muito, produtos financeiros. Aprende-se nos rudimentos de economia que, talvez com excepção de certos bens a cujo consumo se atribui mérito (por exemplo, o leite nas crianças), o consumidor fica sempre melhor se lhe entregarem o equivalente monetário do prémio que estavam a pensar atribuir-lhe. Com esse dinheiro, ele pode escolher o que mais precisa ou que lhe dá maior satisfação. Talvez o Governo pudesse, até, fazer o dois em um, dando de prémio depósitos a prazo ou certificados de aforro ou até obrigações do tesouro, sinalizando, em qualquer caso, a prioridade à poupança, mas não tornando demasiado difícil a monetização do prémio para aqueles a quem o dinheiro faça mesmo falta, o imediato (ou duvidem da solvabilidade do Estado português, no cenário mais cínico).
Não sei se o diabo está nos detalhes. Agora que uma pequena decisão pode revelar quanto à deriva se anda, lá isso pode.
P.S. Se a política fosse levada a sério, o episódio das contas da SRU faria rolar cabeças e não apenas a do comissário político que impediu a sua aprovação. Os interesses partidários minimizam o caso com manobras de diversão. Esta gente não aprendeu nada com as eleições autárquicas.