Corpo do artigo
Já não recordo se foi na Feira dos Capões de Freamunde, se na Feira das Cebolas de Penafiel, uma vez que percorri essas e muitas outras, naquilo que se entendia, no início dos anos 90 do século passado, como parte da tarimba de um aspirante a jornalista. Não me lembro em que feira, mas recordo ter testemunhado essa atividade então conhecida como vendedor de banha da cobra. Gente que se dizia na posse de um unguento que, mesmo que não fosse garantia de cura, aliviaria os sintomas de vários males. Vendedores capazes de pôr a audiência a comprar algo que não só não resolvia problema nenhum, como talvez os agravasse.
Vieram-me à memória os vendedores de banha da cobra a propósito de um livro que me chegou às mãos, escrito por um jornalista que já passou pelo JN, o David Dinis, intitulado "Como proteger a democracia". Sendo que o tema central nos devia mobilizar a todos: como proteger os nossos valores de tolerância relativamente a minorias, os direitos humanos, o sistema político, em suma, a democracia, dos vendedores de banha da cobra que irromperam pela política, ao ponto de ser possível prever que possam conquistar o poder. Sim, é da direita radical populista (ou extrema-direita, decida o leitor) que se fala.
Tal como os vendedores de banha da cobra de antanho, Ventura e os seus seguidores anunciam o remédio que resolverá todos os males: três Salazares para desmantelar o regime, prender os políticos corruptos, expulsar os imigrantes, fechar os ciganos num gueto e, já agora, se for propício, pôr as mulheres a parir e a cozinhar. Se não acreditam na última parte, recordo que Pedro Frazão, vice-presidente do Chega, foi muito caloroso com os "aliados" do movimento Reconquista. Não há espaço para destacar aqui o tipo de trevas em que essa gente gostaria de viver, mas também não é esse o ponto. Porque Ventura logo veio a terreiro dizer que não apoia todas as ideias dos seus amigos ultramontanos. No fundo, como um bom vendedor de banha da cobra, explicou que são só ideias e que, mesmo que não curem todos os males, podem trazer algum alívio.
Há uma diferença fundamental, no entanto, entre os vendedores de banha da cobra do passado e os do presente: os primeiros eram uma mera curiosidade etnográfica em vias de extinção; os segundos são os executores de uma distopia política em expansão.

