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A secção do Rio do Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) lançou recentemente uma campanha cívica com vista a descobrir o que aconteceu a mais de uma centena de activistas políticos desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). Trata-se de um movimento cívico que tem como objectivo imediato o acesso aos arquivos militares visando o apuramento da verdade histórica sobre uma das épocas mais negras da história daquele país. Sob a designação genérica de «Arquivos abertos - as famílias têm esse direito», a iniciativa visa também apurar as circunstâncias em que centenas de outros activistas políticos foram mortos pelas forças repressivas da ditadura.
No âmbito dessa campanha foi lançado um abaixo-assinado pelo «Direito à verdade e à memória dos desaparecidos políticos» que conta com o apoio de vários actores brasileiros. A campanha inclui também um pequeno filme em que alguns dos cidadãos desaparecidos são encarnados por actores como Fernanda Montenegro, Mauro Mendonça, Glória Pires, José Mayer, Eliane Girardini e Osmar Prado. O seu objectivo é fazer ressaltar que, além da tortura de que foram vítimas os desaparecidos, existe ainda a tortura permanente dos seus familiares que desde então procuram em vão saber o que lhes aconteceu. As intervenções dos actores terminam sempre com esta pergunta: «Será que esta tortura nunca vai acabar?». Ao todo, durante o período da ditadura militar, desapareceram 136 pessoas de todas as idades, entre os quais operários, jornalistas, estudantes, sindicalistas, artistas, professores e camponeses, cujas famílias, em alguns casos, apenas reivindicam o direito a sepultá-las com dignidade.
A iniciativa da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro surge num momento em que a sociedade brasileira discute abertamente a questão e exige, cada vez com mais veemência, o acesso aos arquivos militares, onde se pensa estarem as respostas para as angustiantes perguntas que há dezenas de anos não obtêm respostas. Mas a oposição dos militares a essa pretensão tem sido muito forte. Eles alegam, nomeadamente, que os arquivos relativos à repressão já foram destruídos embora poucos acreditem nisso.
Em 2009, foi editado um livro intitulado «Dossié Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil 1964-1985», em que são apresentados os nomes e fotografias de centenas de vítimas da repressão militar durante os anos de chumbo da ditadura. São 767 páginas arrepiantes, contendo inclusivamente, cerca de três dezenas de fotografias dos cadáveres de algumas das vítimas retiradas dos arquivos da tristemente célebre DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), ou seja, do aparelho repressivo civil. Ali estão as fotos e as biografias possíveis dos mortos e desaparecidos, entre os quais a do lendário Carlos Marighella, dirigente da Ação Libertadora Nacional, morto a tiro, em 4 de Novembro de 1969, aos 58 anos, numa emboscada policial numa rua de São Paulo, bem como as de Lyda Monteiro da Silva, funcionária da OAB, morta no Rio de Janeiro, em Agosto de 1980, com 59 anos, ao abrir uma carta-bomba destinada ao então presidente dos advogados brasileiros, Eduardo Seabra Fagundes. Ali está também a foto e a pequena biografia de Marco António Dias Baptista, estudante do ensino secundário e dirigente da Frente Revolucionária Estudantil, desaparecido na cidade de Goiânia (capital do estado de Goiás), em Maio de 1970, dois meses antes de completar 16 anos de idade.
E aí residirá, talvez, a justificação para as dificuldades no apuramento da verdade histórica. Saber-se o que sucedeu àquele adolescente deve ser, hoje, terrível de mais para os seus algozes (pessoas e instituições). Deve-lhes ser impossível suportar, no mundo actual, a ignomínia pública de tamanha infâmia. Por isso, o mais certo é os seus familiares e amigos continuarem a sofrer a tortura resultante do desconhecimento daquilo que realmente lhe aconteceu há quatro décadas.
Talvez ainda seja cedo para o mundo poder compreender por que é que as poderosas forças armadas de países como o Brasil, a Argentina e o Chile prenderam, torturaram, mataram e fizeram desaparecer os corpos de milhares de opositores políticos, muitos deles jovens estudantes idealistas com cerca de 20 anos de idade. Mas enquanto isso não acontecer, enquanto não acabar a tortura dos familiares dos desaparecidos políticos, há um valor que as forças armadas desses países não poderão ostentar na hierarquia das suas virtudes morais: a honra. Mais do que a justiça, só a verdade as poderá reabilitar perante os seus concidadãos e o mundo.