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E se, por uma vez, o Governo viesse invocar Brecht? Do rio que tudo arrasa se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. O que está a suceder com os Estaleiros Navais de Viana do Castelo e, por consequência, com a economia da cidade, estava escrito não nos astros mas no balanço e contas da empresa em questão. Algum dia o que está a acontecer, aconteceria. Tinha-o antecipado aqui, há mais de dois anos: a resistência à mudança iria acabar por conduzir a uma perda maior do que a necessária. Pela Administração da empresa passaram gestores competentes que, um após outro, foram alertando para a insustentabilidade da situação. Por miopia política ou, pior, por falta de coragem para enfrentar os interesses corporativos instalados, o caso foi-se arrastando, consumindo recursos que seriam preciosos se tivesse havido a determinação de encontrar uma outra solução que não a morte lenta. Pouco interessa se os 180 milhões que lá foram derretidos (perante a ausência de resultados, adjectivá-los de "investidos" seria sacrilégio) são, ou não, uma ajuda de Estado. Ajudaram a protelar o desfecho, alimentaram a ilusão e o equívoco. Na configuração actual, que já envolve um número bem menor de trabalhadores, os estaleiros não são viáveis: é que para ser concorrencial não chega ser capaz de atrair encomendas; é preciso olhar para os respectivos custos de produção e verificar que é possível satisfazê-las com resultados positivos, sob pena de estarmos a passar a factura para os contribuintes. E nem as propagandeadas empresas estratégicas, que o Governo agora descobriu, se desoneram dessa regra. Os prejuízos acabam sempre por ter de ser pagos.
Pelo que se vai percebendo do acordo com a Martifer, a empresa terá viabilidade mas com uma estrutura diferente, desde logo em termos do número de trabalhadores. Se nos abstrairmos do ruído mediático, o saldo final não será muito diferente daquele que viria a acontecer pela mera inércia da vida. Os números, como quase sempre, não são claros - quando será que o Governo, este ou outro qualquer, deixa de tratar estes assuntos como se fossem privados e disponibiliza a informação que permita um juízo independente? Ainda assim, com os dados disponíveis, parece haver cerca de 200 trabalhadores que estariam próximo da idade da reforma. Admitindo que, como tem vindo a suceder, muitos não seriam substituídos, a perda líquida de emprego não será muito significativa, embora aconteça de uma só vez o que terá impacto, mas não tanto quanto se tem propalado. Se as pessoas são de Viana ou dos seus arredores, continuarão a fazer a sua vida por ali. Alguns restaurantes e estabelecimentos comerciais da proximidade dos estaleiros perderão negócio, em parte compensado pelo acréscimo que há-de ocorrer noutros, localizados mais perto de onde os reformados farão a sua vida. Nestas situações, o dinheiro segue uma versão da lei da Lavoisier: nem tudo se perde; tudo se transforma.
Não quer isto dizer que a comunidade vianense não tenha razão na sua indignação. Não foi tida nem achada no processo, como é de bom-tom num Governo dominado por uma visão cesarista, na expressão feliz do jornalista Manuel Carvalho. Vistos de Lisboa, na imensidão das estatísticas do desemprego, mais 200, ou até 600, não é um grande número. Nem se tem sensibilidade para o choque, e os dramas que dele decorrem, num ambiente pequeno. Aguiar-Branco tem obrigação de saber melhor e de perceber que, por menos mau que seja o desfecho, haverá consequências gravosas que é de elementar justiça que sejam mitigadas, o que exige que se vá para além da mera reestruturação dos estaleiros. Do lado dos vianenses, persistir na defesa de uma situação inviável, de pouco adianta, conquanto tenham toda a legitimidade para reclamar que tudo seja esclarecido. Assim como a têm para reclamar apoio para iniciativas que consolidem a região de Viana como um pólo de turismo, de competências nas eólicas ou nas actividades ligadas ao mar. Meras sugestões. Quem lá vive saberá mais e melhor o que quer para o seu futuro.
O autor escreve segundo a antiga ortografia