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Uma mulher inconsciente, caída na casa de banho de uma discoteca, é violada por dois homens. Em tribunal de primeira instância os violadores são condenados a quatro anos e meio de pena suspensa. O Ministério Público recorre, pedindo condenação a pena efetiva, mas o Tribunal da Relação do Porto (TRP) mantém a sentença. Segundo os respetivos juízes, "a culpa dos arguidos situa-se na mediania", no contexto de uma "noite com muita bebida" em "ambiente de sedução mútua", "ocasionalidade"! Ou seja, uma mulher inconsciente seduz, o álcool é visto como fator de ponderação atenuante e a ilicitude cometida é mediana pois "não há danos físicos (ou diminutos), nem violência"!
O Código Penal distingue o crime de "abuso sexual de pessoa incapaz de resistência" do crime de" violação", implicando este último "violência, ameaça grave", ou colocar a vítima "com impossibilidade de resistir" (art.º 164). Juridicamente, se não houver violência física do agressor não há violação. Este é um dos fundamentos evocados na sentença ultrajante do TRP, o argumento técnico parafraseado nos jornais por quem entende como legítima a sentença. Contudo, o Código Penal prevê penas de prisão de seis a oito anos para os crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (podendo ser agravadas em situações, como a de cópula, o que curiosamente ocorreu na discoteca de Gaia).
Em 2016, segundo dados do Ministério da Justiça, 58% dos crimes sexuais foram punidos com prisão suspensa. Talvez esteja tudo certo. Legal. Mas do lado de cá do cidadão, que olha o poder judicial como uma instância de justiça, a coisa não é tão certa e clara! Um véu de displicência parece ensombrar o espírito de quem interpreta a lei, em particular quando as vítimas são mulheres, naturalizando o inumano. Uma ideologia sexista pontua, objetivamente, diversos acórdãos, ora abrigada em interpretações positivistas da lei, ora ornando com noções obsoletas, bafientas de ódio, a retórica do discurso.
Se é preciso tornar mais clara a lei, façam-no. Mas não se esqueçam de introduzir a reflexão ética na formação dos juízes.
PROFESSORA COORDENADORA DO POLITÉCNICO DO PORTO