Virar a página...
O desígnio comum que forçou a Esquerda a um entendimento que lhe permitiu construir uma alternativa inédita de Governo resume-se numa frase curta e lapidar: "virar a página da austeridade!"
Corpo do artigo
O país parecia irremediavelmente condenado a um destino fruste. A austeridade - desde a rejeição do PEC IV, em abril de 2011 - já não se reduzia a uma terapia temporária, indispensável para superar a crise financeira e resolver uma dificuldade conjuntural. Transformara-se, entretanto, na expiação de um vício, numa penitência perpétua, sem esperança de perdão. Um equivalente assético da política e, por fim, a pura essência da governação! À supressão da política no plano da ação governativa, somava-se a irrelevância de um Parlamento dominado pela maioria que a sustentava. A pluralidade cultural, o relativismo inerente ao apreço pelo debate e pelo confronto público de ideias e propostas - exercícios de transparência indissociáveis da vida democrática - iam sendo substituídos pelos imperativos éticos do pagamento pontual da dívida, pela vontade imperscrutável dos mercados anónimos, pelo mando irresistível das "autoridades" de Bruxelas ou Berlim.
Simultaneamente, a Presidência da República era ocupada por um titular que sempre recusara admitir a sua condição política, fosse na chefia do seu próprio partido - a que tinha ascendido "casualmente", quando fazia a rodagem do seu carro particular! - fosse na chefia do Governo ou, mais tarde, na chefia do Estado! Há precisamente cinco anos, no ato de posse do seu último mandato, declarava solenemente que não era possível pedir mais sacrifícios aos portugueses, numa crítica óbvia ao então primeiro-ministro, que abandonou a cerimónia e acabaria por pedir a demissão algumas semanas mais tarde. Já não foi ele quem exigiu os sacrifícios inauditos que iriam ser impostos aos cidadãos na legislatura seguinte, bem conhecidos e penosamente contabilizados em extraordinárias reduções de salários e pensões, aumentos de impostos, falências, desemprego e emigração... todavia impotentes para alcançar o desejado desagravamento da "dívida soberana"! Porém, não se voltou a ouvir a palavra do presidente - outrora tão indignado e impaciente - nem mesmo quando Vítor Gaspar, o todo-poderoso ministro das Finanças, reconheceu o fracasso e abandonou o cargo, deixando o Governo do PSD/CDS entregue à sua triste sina. Pelo silêncio, o presidente admitia a leviandade que o tinha levado à reclamação "extemporânea" do fim da austeridade, à demissão do Governo anterior e à convocação de eleições legislativas antecipadas. E ao mesmo tempo, o seu silêncio e o seu comportamento incongruente serviam de caução ao "dogma" governamental da ausência de alternativa.
A palavra "austeridade" designa uma qualidade moral ou mera preferência estética: descreve uma certa atitude ou comportamento, um modo de vida, uma vocação, uma opção religiosa ou artística. Em si mesma, a "austeridade" não é progressista nem reacionária, da Direita ou da Esquerda. Porém, uma vez alcandorada ao estatuto de "doutrina oficial" do Estado e assegurada a sua hegemonia em todos os órgãos de soberania dependentes da legitimação popular, a "austeridade" sobrepôs-se à política, degradou o sentido da intervenção cívica, demonstrando a sua inutilidade, e fez da democracia um adorno supérfluo. É isso que explica o relativo sucesso da coligação dos partidos responsáveis pelo anterior Governo - embora mascarados de PàF - nas eleições legislativas do passado mês de outubro. Foi essa a "página negra" que o novo Governo da Esquerda se propôs virar.
Sinal dos novos tempos foi também o discurso de tomada de posse do presidente eleito - tão diferente do discurso pronunciado pelo antecessor, no mesmo local, há precisamente cinco anos! Do novo titular espera-se que saiba "virar a página" e devolver ao cargo a dignidade que a Constituição lhe confere, e que agora jurou "defender, cumprir e fazer cumprir". Poucos conhecerão a Lei Fundamental - aprovada com o seu voto, em 1976, como fez questão de recordar - tão bem como ele.