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Declaração de interesses (repetida): sou católica, apostólica, romana e de forte devoção Mariana.
E foi na dupla condição, de crente e de cidadã, que pude observar, em dois momentos específicos da visita da imagem da Virgem Peregrina ao Porto, uma saudável e adulta convivência entre a Igreja e a sociedade civil, entre crentes e não crentes, entre um Estado laico e um povo que, em larga medida, o não é.
Numa sociedade onde há pouco espaço para o desenvolvimento do eu transcendente e com menos tolerância ainda para a sua manifestação ritualizada, foi espantoso verificar o respeito, a solidariedade, a participação proativa da sociedade laica e das suas instituições.
Francisco explica muito bem as virtualidades deste modelo: "O modelo não é a esfera, que não é superior às partes, onde cada ponto é equidistante do centro e não há diferenças entre um ponto e outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. (...) É a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos." (in A Alegria do Evangelho)
Nestes dias, concretamente, a sociedade civil, laica e institucional do Porto deu o exemplo. Em respeito à crença e à fé de tantos, a Guarda Nacional Republicana recebeu a Virgem no quartel do Carmo, o corpo distrital dos bombeiros escoltou o andor da Virgem na procissão solene de 30 de abril, a Câmara do Porto ofereceu, entre outros aspetos, a instalação sonora, o metro do Porto funcionou toda a noite para que a multidão reunida na Igreja de N. Senhora da Conceição, ao Marquês, pudesse participar na noite de oração.
D. António Francisco, bispo do Porto, correspondeu e apelou com clareza e bondade tocantes, à consideração e respeito mútuos, à prece recíproca, à construção do tal poliedro onde cada face é apenas uma parte do todo superior.
Talvez pareça esquisito que tudo isto simplesmente se sobreponha à conjuntura, à política, aos problemas que parecem tão absolutamente inadiáveis. Mas, como também diz Francisco, "Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai".
O que nós, os crentes, vivemos por estes dias no Porto foi iluminado por essa luz do tempo longo.
Por isso, em meu nome e certamente no de tantos, obrigada a todos os que respeitaram, colaborando e a todos os que contribuíram longe dos dividendos políticos e sem medo do politicamente incorreto.
*ANALISTA FINANCEIRA