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É obviamente inegável a carreira singular de Cristiano Ronaldo. Um miúdo vindo de uma freguesia madeirense e que venceu, mesmo com todas as suas circunstâncias. A sua capacidade de trabalho é altamente meritória, especialmente num mundo tão competitivo e com tanta pressão como o futebol profissional. A longevidade deste atleta é um caso de estudo mundial e não deixa de ser um exemplo de superação permanente para qualquer geração. Posto isto, eu quero lá saber o que é que o Cristiano pensa, em que espectro político é que se insere ou quem são os ídolos que admira. Não tenho qualquer motivo para me interessar. Mas não pode ser. De repente, o país parou para analisar as escolhas de um jogador de futebol. Parece que Cristiano escolheu ir jantar com um milionário do imobiliário que é hoje presidente de um dos países mais influentes do Mundo, pela mão de um príncipe herdeiro que implementa a lei da Sharia. Quem sou eu para julgar. Eu também, a determinada altura, achei que fazer uma franja acima dos olhos me faria passar uma boa imagem. Nada me tira da ideia que o Donald Trump fez obras para ampliar a Casa Branca para que na terça-feira houvesse espaço para os egos dos convidados daquela comitiva.
Se muitas vezes já é difícil corresponder à expectativa que um par de pessoas tem sobre nós, não imagino o que será pensar em corresponder à de milhões. Esta semana, tivemos, de um lado, pessoas que se indignaram com este convívio, e do outro, pessoas que aplaudiram a - e cito - "coragem" do atleta por esta ação. Sim. O nosso bravo. A fazer uma coisa que pode pôr em causa até a sua subsistência. Por causa deste jantar, é capaz de, na segunda-feira, ser posto a trabalhar numa mesinha virada para a parede até não aguentar mais e despedir-se sem direito a fundo de desemprego. Este guerreiro jantou, caramba. Também foi bastante curioso perceber que a ação mais polémica de Cristiano Ronaldo praticada nos Estados Unidos tenha sido uma visita à Casa Branca e não a acusação de violação. Põe mais em causa o carácter de uma pessoa apertar a mão ao presidente americano que poder ter apertado uma mulher depois de uma ida à discoteca.
Agora, eu vou mesmo valorizar o modo de ver o mundo de alguém cuja visão está sempre em frente ao espelho? Ronaldo, como muitos outros atletas nacionais, decidiu mudar-se para um país em que as próprias escolhas individuais de 99,9% da população não são aceites e já ele, como pessoa rica e conhecida, pôde mudar-se e viver amancebado com uma mulher. Eu gostava mais quando a propaganda que ele fazia era aquela do "amore mioooo" e não a de dar a cara pelo Governo saudita. É que, parecendo que não, as políticas de detenção de ativistas, as acusações permanentes de violação de direitos humanos ou o assassinato de jornalistas são coisas chatas. Dizem que Cristiano está numa forma invejável para a idade que tem, mas em termos de coluna vertebral, é capaz de já inspirar alguns cuidados.
Eu, como não percebo muito de nacionalismos, cultivei-me junto de representantes do partido de extrema-direita e, pelo menos, segundo André Ventura, "Não é português quem quer. Ser português sente-se". E depois fui ouvir o que o capitão da seleção nacional tem dito a este respeito e, por algumas vezes, referiu "sentir-se saudita".
Agora, não deixa de ser muito engraçado ver os representantes do partido de extrema-direita, que tanto enche a boca para falar de corrupção, a fazer campanha por um cidadão que em 2019 acabou a pagar mais de 18 milhões de euros ao estado espanhol num acordo judicial por fraude fiscal.

