Ia bem lançada a década de 80 quando avancei para a sala de jogos do Casino da Figueira da Foz com aquele nervoso miudinho de quem faz as coisas pela primeira vez. É verdade que não era a primeira ocasião em que nas férias grandes, em Benidorm ou Torremolinos, andara a experimentar "máquinas que davam dinheiro" com os meus pais, aquelas que mantinham as pesetas em pilhas, amontoadas, enquanto uma plataforma vaivém se movia para a frente e para trás e nada das malditas virem ter com o puto pequeno que admirava o equilíbrio das moedas tanto quanto desejava que - malditas - desabassem de uma vez para o vácuo que as faria tilintar na gaveta inox onde uma única vez meti a mão (uma única vez, a sorte que tive) para levantar um punhado delas, esfuziante e meio atónito ("desta vez não houve íman", apregoava a rebentar de contentamento, perante o olhar parental meio jocoso e complacente). Mas no Casino da Figueira estava sozinho e isso fazia toda a diferença. Entrara num lugar "proibido", escapulindo-me entre duas sessões do Festival de Cinema cujos filmes papava há vários anos como se fossem pipocas doces, houvesse ou não legendas, fosse qual fosse a proveniência. Joguei duas ou três moedas de escudo nas "máquinas que davam dinheiro"e tive sorte: ganhei o dobro. Nessa noite, na cama, só pensava em como lá podia voltar no dia seguinte sem me barrarem a entrada. Voltei, entrei e perdi. Intuitivamente percebi como o jogo se podia instalar e acomodar rápido, como um prazer que se antecipa fácil. Foi ali que me atemorizei e me desiludi com a perda, ainda miúdo. Talvez instintivamente tenha sentido receio ou, miúdo, simplesmente tenha sentido a desilusão de perder. A partir desse dia só joguei no Totobola com o meu avô, até ao momento em que ele já não tinha interesse - ou já não podia - jogar. Nunca joguei no Euromilhões e sei a minha chave.
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Ironicamente, o novo Decreto-Lei n.º 66/2015 que liberaliza a actividade do jogo "online" entrou em vigor há dois dias, neste domingo, o dia vulgarmente atribuído ao descanso e ao ócio. Como um convite subliminar. As receitas que o Estado arrecadará com a permissão do jogo - até agora ilegal -, em território português e com a liquidez internacional que permitirá que jogadores estrangeiros possam jogar em Portugal, podem ascender a 25 milhões de euros em 2015 (previsão do Orçamento do Estado). O montante previsto advém do licenciamento dos operadores (renovável por 3 anos) em regime liberal e sem exclusividade, próximo do modelo existente nos EUA, assim como do novo imposto sobre o jogo "online" que replica, em traços largos, o modelo dos casinos com base territorial.
Legalizar traz liberdade, receitas e... responsabilidades acrescidas. A repartição das receitas fiscais far-se-á sobretudo entre o Estado, o Turismo de Portugal e o SICAD. Será também este último organismo que deverá contrabalançar a contabilização das perdas e danos: nos Centros de Respostas Integradas (CRI) o número de jogadores viciados não pára de aumentar e um estudo aponta para a existência de 16 mil pessoas viciadas no jogo (num universo estimado de 400 mil jogadores em Portugal). Em Espanha - um país que trata a adição ao jogo como uma doença e onde o jogo "online" foi regularizado em 2012 - o jogador compulsivo é cada vez mais jovem e, tantas vezes, menor de idade. Bastaram 6 meses de legalização para que "nuestros hermanos" duplicassem o valor das apostas (461 milhões) e o número de jogadores aumentasse brutalmente (de 195 mil para 1 milhão de pessoas).
Urge retroceder e proibir? Obviamente que não. Como no campo das substâncias psicoactivas ou da maçã de Adão, o Inferno estará sempre mais próximo se for dado a conhecer por um fora-da-lei em formato de serpente. Reconhecer a realidade é trazê-la para mais perto, percebê-la melhor, conformá-la a padrões de ética, agir sobre os problemas. No caso do jogo "online", seja ele com cavalos, apostas desportivas, póquer ou casinos virtuais, a realidade portuguesa subsiste há anos com apostadores lusitanos em sites estrangeiros onde a única diferença é de que nenhum imposto é pago em Portugal. Eu próprio quero apostar, em Portugal "online" e legal, no vencedor da próxima Supertaça de futebol e no campeão da Liga portuguesa. Antes isso que a tristeza esbugalhada da raspadinha. E assim declaro que vou voltar ao jogo, decidido, mantendo a memória do que ganhei e perdi quando a década de 80 ia bem lançada no Casino da Figueira.