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A minha avó não sabia ler nem escrever. Criou filhas e netos, fez-se figura na rua sem saída e estava convencida de que se gritasse muito, muito alto, a minha tia ouvia-a quando passava na ponte lá muito longe, mesmo que o único efeito dos berros fosse um ou outro AVC entre a passarada. Quando via nas notícias que uma mulher tinha sido esfaqueada pelo marido, soltava: "Tantas facadas! Se ainda fosse só uma ou duas...". Não o dizia por ser apologista da violência. Era antes o reflexo de uma vivência marcada pelas décadas de obscurantismo em que Portugal esteve mergulhado. E de que muitos, agora, têm saudades. Morrem-nos os velhos e de repente já temos pouca gente que se lembra de um país com quase dois milhões de analfabetos, uma elevadíssima taxa de mortalidade infantil e quase metade da população a viver na pobreza, entre outras magnificências. Abundavam presos políticos, bufos e censores. Ah, que país de sonho! Compreendo quem tem saudades desse sossegado Portugal de bem. Também tive um cão que gostava de comer o que vomitava. E essa nem era a sua refeição (ou atividade) mais abjeta.