"Não há mediação possível entre vontades, ao contrário do que se passa com as opiniões". Esta frase, dita e escrita por Hanna Arendt, filósofa política alemã de origem judaica (o regime nazi roubou-lhe a nacionalidade, ela tornou-se apátrida e acabou por adotar a cidadania dos EUA) resume bem, creio eu, o evidente e crescente divórcio entre o Governo e os portugueses, ou boa parte deles.
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Podemos olhar para as greves setoriais para sustentar o fosso. Podemos ver na greve geral o ponto máximo desse fosso. Podemos entender as manifestações de desagrado que esperam ministros e secretários de Estado onde quer que eles vão como prova desse fosso. Sendo todos estes bons exemplos da tese, julgo que o problema é mais fundo, logo mais difícil de ultrapassar.
Volto ao início: não há mediação possível entre vontades. Não tem o Governo vontade de construir um país melhor? Tem, sem dúvida. Sucede que a vontade do Executivo de Passos Coelho não toca na vontade dos portugueses, antes está longe dela. Estamos perante duas linhas retas paralelas que se podem estender até ao infinito sem haver entre elas ponto de intersecção. Ora, como não há mediação entre vontades, só uma de duas coisas pode acontecer: ou uma das linhas se desvia da trajetória e vai de encontro à outra, ou, não indo, resta esperar para ver qual das duas quebra no trajeto.
Na passada segunda-feira, no discurso de encerramento da conferência que o JN realizou no Porto, a propósito da comemoração do seu 125.o aniversário, o ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, disse esta coisa: "O pessimismo e a descrença atuais participam do mesmo problema da euforia passada: um desencontro com a realidade, que só pode distorcer a forma como olhamos para o futuro, talvez prejudicando-o". Para o ministro, "se o otimismo descuidado dos anos que precederam a crise não tinha razão de ser e foi mesmo pernicioso (...), o mesmo se pode dizer do pessimismo de hoje".
Ora, talvez seja um bocadinho de mais e um bocadinho prematuro pedir aos portugueses que abram um sorriso de orelha a orelha e recebam, com o mesmo entusiasmo dos fanáticos, o vento que o futuro sopra.
Verdade que carregar nos negros não resolve nada. Verdade que é necessário não carpir mágoas e seguir em frente, lutando. Mas isso não se faz decretando o fim do pessimismo e a chegada do otimismo. Isso não se faz propalando teses sobre a descrença. Isso faz-se mobilizando esforços e capacidades. Por exemplo: o ministro podia bem ter aproveitado a sua intervenção, ou parte dela, para falar sobre o caráter decisivo dos fundos comunitários para regiões deprimidas como o Norte do país. Teria, seguramente, ido de encontro à vontade de muitos decisores que o ouviam. Preferiu satisfazer a sua vontade. Ficou sem mediação. Mais uma vez.