Damos de barato a fortuna de podermos eleger alguém, mas devíamos nunca esquecer que votar é a formalidade mais elementar da nossa liberdade. Sem o acesso a eleições justas nenhuma condição se vocaciona à liberdade.
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Não está previsto sistema melhor, mais gentil para com uma profusão de pessoas únicas cuja plenitude apenas se alcançará exatamente com a garantia dessa característica exuberante: a de sermos todos únicos e valermos tanto quanto cada um, nem mais nem menos.
O voto é a afinação possível entre uma multidão de vozes. Falível, tantas vezes exercido em protesto mais do que por escolha de consciência, o voto é a nossa inscrição na cidadania. Sem ele, passamos ao largo do que importa ao coletivo, somos adiados ou uma espécie de excesso da sociedade. Fazemos parte de um boicote, somos uma espécie de boicote.
Nossa legitimidade para cada coisa é simbolizada pelo voto. De outro modo, demitimo-nos. Temos todo o tempo para criticar, propor melhor, sonhar com outra humanidade que nem necessite de escrutínio, uma que esteja protegida por definição, por genuína compaixão. No entanto, perante a realidade, a democracia é o contrato mais respeitoso que alguma vez se pôde alcançar. O voto significa a ratificação da democracia como sistema admitido. Não votar não é apenas deixar que os outros decidam, é abrir a hipótese grave de manifestar desinteresse pelo sistema que está instalado. E isso torna-se imperdoável. É leviano para consigo e para com os outros.
Por mais que o domingo lhe pareça de boa cerimónia para o sono, um passeio pelo campo, a vista do mar, o abraço dos netos, a brincadeira dos filhos a crescer, por mais que lhe pareça o dia perfeito para ouvir inteira uma ópera, passar a apreciar a magnífica tela "Fons Vitae" no Museu da Misericórdia do Porto, comer ovos-moles em Aveiro, contar árvores na planície do Alentejo, ficar assombrado com vento no Cabo Espichel, ler finalmente o genial Marcel Proust, passe primeiro pela mesa de voto. A sua inscrição na cidadania urge. Não a descure, não a menospreze. O poder que tem em mãos é um luxo que a História inteira perigou. Esse luxo pertence-lhe. Não servirá a ninguém se o desperdiçar.
Escritor