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O espectáculo mais terno e belo e triste e alegre do quotidiano é o ser humano, é o nosso irmão. Nunca se nos esgota o espectáculo do outro. Semelhantes a mim há por todo o lado constantemente - basta observá-los para me maravilhar. E não me sobraria um único segundo de tédio se observasse sempre os outros, em especial nos espaços públicos, onde as pessoas se despem sem se despirem e onde são vistas sem verem.
Está sempre nua a pessoa que observamos, mas hoje em dia a nudez está mais à mostra porque os telemóveis nos desnudam a toda a hora.
Nas salas de espera das repartições públicas ou dos hospitais aguardam centenas de pessoas. Eu estou completamente a sós no meio delas. E elas também estão a sós umas para as outras: quase todas olham para a palma das mãos. Não lêem a sina, mas é uma espécie de destino: em cima das palmas estão os telemóveis - e dentro dos telemóveis está tudo, a vida, o destino, a sina, a alegria e a tristeza.
Numa sala de espera há mais solidão do que espera. Tanta solidão pequenina, solidão de 6.1 polegadas, onde cabe imensa gente sem caber ninguém. Através do ecrã, as pessoas parecem ligadas a tanta gente, mas ficam tão absortas e distantes, que nem estão ligadas a elas mesmas. Nunca suspeitariam que eu as observo.
E que aprendo tudo sobre elas. Os gestos de cansaço e os sorrisos de uma piada que alguém disse dentro do telemóvel. Lá dentro, onde está em diminutivo a vida das pessoas, de tal maneira, que muitas vezes não preciso de imaginar. As vidas íntimas e nuas ali estão, à distância de uma espreitadela que ninguém repara. O marido daquela mulher deseja-lhe sorte, o filho da outra quer saber das chaves da garagem, o homem de T-shirt suja e velha procura no Google iates de luxo. E aquela criança assassina fruta virtual com o dedo.
Eles sabem lá que eu os observo. Não suspeitam o quanto me fascina e espanta o grande espectáculo da sua intimidade. E como encontro entre nós grandes parecenças e grandes diferenças.
Mas algumas pessoas nem despidas estão nuas. Por mais que as observe, não vejo nada. Deslizam o polegar uma e outra vez pelo ecrã do telemóvel, abanam a cabeça em conformidade, e vão fazendo “scroll, scroll, scroll” pelas redes sociais, que são cemitérios de gente viva. Completamente opacas a quem as observa, quase não passa por elas um raio de intimidade. Assemelham-se a nós, mas não são como nós. São zombies e fazem zombimente “scroll, scroll, scroll”.
O autor escreve segundo a antiga ortografia