Analisando o nosso passado, com o nosso presente e com as nossas perspetivas de futuro enquanto país, assalta-me sempre o espanto com a nossa capacidade de contradição.
É que o mesmo país que ainda não acabou com os vistos Gold e onde se pode "comprar" a cidadania pelo preço de um T3 nas Avenidas Novas teima em não resolver o problema dos milhares de pessoas que cá nasceram enquanto esteve em vigor a Lei da Nacionalidade Portuguesa de 1981 e que ficaram sem papéis e sem pátria até hoje. O mesmo país em que os jovens não conseguem estabilidade laboral ou salários decentes para pagar o exorbitante preço do metro quadrado (sobretudo em altura de subida vertiginosa das taxas de juro) e em que a taxa de emigração jovem paira sobre as nossas cabeças grisalhas como uma séria ameaça cria incentivos para a atração dos chamados nómadas digitais (que pagam impostos noutros países). Um país cuja capital, que durante séculos foi também a capital de um império genocida e explorador, tem suspensa (há anos) a instalação do tardio memorial da escravatura no Campo das Cebolas (mais do que legitimado pela votação em orçamento participativo), não perdeu tempo, em pleno 2023, a imprimir na pedra os brasões das ex-colónias (depois de terem sido desfeitos os canteiros onde anacronicamente repousavam em Belém). Um país em que o salário médio real dos jovens licenciados que entram no mercado de trabalho era maior em 2006 do que em 2020 e em que o custo de vida aumenta, ano após ano, sobretudo com toda a inflação dos últimos meses, mas cujo Governo acha que aumentar os salários pode agravar a dinâmica inflacionária e, portanto, perpetua a perda de poder de compra. Um país em que a natalidade é baixa, mas onde o SNS parece não garantir o acesso aos cuidados materno-infantis para todas, e em que (durante o ano de 2022) foram despedidas em média três grávidas ou mães a amamentar por dia, apesar de ser ilegal. Um país em que todas as dimensões do desenvolvimento e da tal Liberdade que Sérgio Godinho cantou e que Abril prometeu vão falhando, à medida que se sucedem as crises e os abalos da geopolítica do Mundo. A paz ainda existe, apesar da guerra na Europa, o pão está cada vez mais caro e inacessível mesmo para quem tem emprego, a habitação é um problema que as décadas foram enquistando e que, neste momento, parece irresolúvel, e a educação está a ferro e fogo (com greves e falta de professores). Já para não falar dos problemas na justiça, da perda de fôlego na economia, do desgaste das instituições políticas e do crescimento da extrema-direita. Estamos no final de março e o abril avizinha-se muito duro para os portugueses, pois nem os dias longos e o cheiro a primavera parecem aligeirar as contas por pagar, as dívidas ao banco e as preocupações com o futuro.
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