É muito triste que o espaço da academia não seja um lugar seguro para as mulheres. Infelizmente, isso é bastante óbvio para quase todas nós, mas muito naturalizado, quer pelas próprias instituições de ensino fortemente hierarquizadas, com suas rotinas de encobrimento e normalização dos abusos, quer pela nossa própria dessensibilização progressiva, já que raramente achamos que vale a pena denunciar e vamo-nos resignando, mantendo em rumor o que deveria ser denúncia desbragada. E não falo apenas de abusos graves (de assédio sexual ou moral), falo dos pequenos abusos de cada dia, da condescendência com que somos tantas vezes tratadas (quando os nossos colegas homens são considerados), da expectativa que sejamos mais aplicadas, mais servis, mais discretas, mais dispostas a fazer o trabalho organizativo e administrativo e mais propensas à bajulação dos mestres. É que se a academia é um meio muito pouco democrático e cheio de gatekeepers, o peso do patriarcado faz pender para o lado das mulheres um ónus acrescido. E na roda de rato da precariedade do trabalho científico, estas ficam especialmente à mercê do poder do topo da pirâmide (onde abundam os velhos professores).
Havendo uma assimetria de poder muito profunda entre os jovens aspirantes a cientistas e os grandes catedráticos, esta é ainda mais profunda se pensarmos que a grande maioria dos juniores são mulheres. Isto porque nas últimas décadas estas entraram em força nas universidades e são hoje a maioria da população licenciada, mas os lugares de poder, pelos anos de trabalho (e pela falta de oportunidades para entrar nos quadros) ainda pertencem sobretudo aos homens.
Ora se qualquer jovem investigador precisa de ter um orientador, com poder para assinar pedidos de renovação de bolsa, entrega e avaliação de teses, cartas de recomendação ou candidaturas a financiamento de projetos, é óbvio que este terá muito poder sobre os seus desígnios. Muito dificilmente um jovem cientista consegue financiar um projeto sem a assinatura de um sénior como coautor e, nesta lógica, o sénior vê o seu curriculum crescer exponencialmente à custa do trabalho de cada orientando (a cada artigo editado ou a cada ideia de projeto que capta uma bolsa), enquanto o júnior precisa de se manter sob a sua asa para continuar, de bolsa em bolsa, a lutar por uma posição mais sólida (muitas vezes já na meia idade).
Ou seja, o extrativismo intelectual e científico acaba por ser a base da academia hoje, pois cada investigador de prestígio pode contar com um séquito de precários sob a sua alçada, passíveis de vampirização e abuso, o que faz com que a situação do subalterno dependa em boa medida dos escrúpulos do professor com P grande. E, claro, se falarmos de subalternas, não só aumenta o risco do extrativismo, como também deste passar a ser sexual.
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