A inteligência coletiva e a criatividade dos territórios. O novo espírito do capitalismo
Tecnologia, arte e desenvolvimento sustentável dos territórios pode ser uma convergência muito prometedora se soubermos contextualizar e integrar devidamente todas as variáveis envolvidas.
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E aqui reside a dificuldade, a década 2020-2030 é atravessada por grandes transições - climáticas, energéticas, ecológicas, digitais, laborais, migratórias, demográficas, socioculturais, geopolíticas - que, pela sua complexidade inusitada, poderíamos designar como mudanças paradigmáticas. Em particular, as relações entre cultura e desenvolvimento são, desde há muito, um assunto recorrente, mas, desta vez, o capitalismo digital mudou o paradigma em que assentava a relação entre cultura e desenvolvimento, no sentido em que a criatividade se torna um recurso cada vez mais distribuído e abundante e com ela a emergência de uma economia criativa cada vez mais abrangente e compreensiva, muito para lá das indústrias culturais e criativas mais convencionais ligadas, genericamente, às artes do lazer, do espetáculo e da cultura. No contexto desta década, ao mesmo tempo tão sobrecarregada e prometedora, há, portanto, lugar para uma metanarrativa do capitalismo digital e da economia criativa, isto é, um novo espírito do capitalismo para as relações entre cultura e desenvolvimento.
Criatividade e processo criativo, o novo espírito do capitalismo
Como dissemos, o capitalismo digital mudou o paradigma que ligava cultura e desenvolvimento territorial. No estádio atual do nosso desenvolvimento, a relação entre os processos de patrimonialização, turistificação e digitalização parece ser a mais promissora no que diz respeito à conexão entre cultura e desenvolvimento territorial, sobretudo nas áreas de baixa densidade. Vejamos algumas características que favorecem estas interações, se quisermos, o novo espírito do capitalismo aferido pelas relações entre cultura e desenvolvimento.
- Em primeiro lugar, o triângulo virtuoso entre tecnologia, património e cultura precisa de ser conduzido com muita inteligência e maestria: a tecnologia, e em especial as artes digitais, recoloca a relação entre património e cultura num patamar mais elevado e abre a porta a uma economia criativa e performativa muito mais diversificada;
- Em segundo lugar, a ligação hipertextual que o património mantém com muitas outras disciplinas e linguagens através da sua capilaridade tecnológica e digital cria as condições contextuais favoráveis para a produção de conteúdos artísticos e culturais de maior valor
acrescentado, por exemplo, para a valorização das artes e ofícios tradicionais e, correlativamente, para a denominação dos produtos locais e regionais;
- Em terceiro lugar, a tecnologia e a transformação digital podem ajudar a reduzir os efeitos externos de algumas intervenções na medida em que a divisibilidade tecnológica e a miniaturização permitidas pela transformação digital ajudam a conceber um padrão de internalização desses efeitos, além de que este facto é um grande avanço para a gestão do património natural e cultural, material e imaterial;
- Em quarto lugar, a ética do cuidado previne os excessos de uma lógica de patrimonialização abusiva, se, para o efeito, definirmos um protocolo de regras, processos e procedimentos, de tal modo que não sejam irreversíveis os danos causados sobre os recursos patrimoniais por via de uma espécie de industrialização do património pressionada muitas vezes pelo processo de turistificação;
- Em quinto lugar, a nova cadeia de valor gerada pelo processo de patrimonialização pressiona as opções de reabilitação e restauro, mas, também, a introdução das tecnologias digitais altera a repartição dos rendimentos internos à cadeia de valor, quase sempre em benefício de interesses exteriores aos próprios territórios, um problema que o território necessita de acautelar;
- Em sexto lugar, a profissionalização em redor do processo de patrimonialização pode não ser pacífica e colidir com o processo de industrialização e turistificação, na medida em que a coabitação entre novas profissões e interesses setoriais, por exemplo, entre conservadores, gestores, operadores, animadores e curadores, pode ser problemática;
- Em sétimo lugar, a relação entre valoração e valorização é crítica no processo de patrimonialização e na formação de uma justa cadeia de valor; a valoração reporta-se ao sistema de valores dominante e à respetiva cultura do património e deve ser acautelada por uma adequada medida de valorização, porém, nem sempre é fácil que lhe corresponda uma medida de valorização que respeite aqueles valores e cultura;
- Em oitavo lugar, o consenso social e a legitimação simbólica são fundamentais para uma transmissão benigna da herança patrimonial; por esta razão, os processos de classificação, denominação e certificação afiguram-se fundamentais para uma transmissão patrimonial que não ofenda a memória histórica e os recursos potenciais, as terras raras do território;
- Em nono lugar, a nova governação das cidades inteligentes e criativas, baseada na cultura digital e na inteligência coletiva territorial, deve fazer prova de vida, também no que se refere à sustentabilidade da relação entre cultura e desenvolvimento; a boa governação política da cidade dependerá em linha direta de muitas decisões tomadas a propósito dos processos de patrimonialização, turistificação e digitalização e seu impacto benigno na qualidade de vida dos cidadãos e nas cadeias de valor produtivas;
- Por último, a notoriedade e visibilidade atribuídas pelas classificações da Unesco, das convenções do Conselho da Europa ou da União Europeia constituem um estímulo fundamental para o estudo científico dos nossos recursos patrimoniais, assim como um instrumento precioso de marketing territorial.
Se estiverem reunidas, as condições mencionadas favorecem, indubitavelmente, todo o desenvolvimento do ciclo criativo. Vejamos mais de perto essa sequência:
- Em primeiro lugar, a formação das equipas criativas e o desenho do processo colaborativo entre instituições do ensino superior, serviços públicos locais e regionais, empresários e associações empresariais, associações culturais e autores, onde se incluem os incentivos para atrair uma crescente classe criativa,
- Em segundo lugar, é fundamental a discussão sobre o génio e o espírito do lugar e os sinais distintivos territoriais com maior potencial para serem representados como capital simbólico essencial e elemento fundamental de promoção e marketing territorial,
- Em terceiro lugar, é fundamental o mapeamento das fileiras económicas, cadeias de valor, áreas empresariais, mercados de nicho e denominações de origem com maior potencial e valor acrescentado, mas, também, as artes, ofícios e produções artesanais que acrescentam indicação geográfica e geografia sentimental às produções e serviços convencionais,
- Em quarto lugar, é fundamental o mapeamento das amenidades paisagísticas, dos percursos de natureza, das artes da paisagem, mas, também, das infraestruturas verdes e operações de mitigação e adaptação no combate às alterações climáticas onde se incluem a regeneração e valorização dos serviços de ecossistema,
- Em quinto lugar, é fundamental o mapeamento das fontes de bio resíduos, as boas práticas de bio economia e economia circular aplicáveis, onde também se incluem as produções conjuntas e os bens comuns como imagens de marca e ilustração eloquente do espírito do lugar,
- Em sexto lugar, e com base em todo o processo criativo referido, é fundamental um grande programa educativo e cultural sobre a importância narrativa dos sinais distintivos territoriais, o papel da turistificação dos lugares e a eficácia da comunicação simbólica no desenvolvimento dos lugares e territórios e, bem assim, na qualidade de vida e bem-estar das populações.
Um programa de economia criativa e curadoria territorial
Tudo o que dissemos precisa, digamos, de um programa de pós-produção. Com os recursos da inteligência coletiva e da criatividade territorial à nossa disposição, materiais e imateriais, trata-se, agora, de montar um estaleiro de economia criativa, arquitetura e curadoria territorial em direção a um objetivo mais ambicioso, muito para lá das convencionais indústrias culturais de cariz urbano. Estou convencido de que a conexão das redes 4G e 5G impulsionará a convergência entre as transições climática, energética, ecológica e alimentar e essa convergência será o grande motor da relação entre cultura e desenvolvimento e, em especial, a emergência de uma 2ªruralidade, um universo pós-moderno que surgirá por virtude do combate às alterações climáticas, do novo mix energético e da nova ecologia funcional das relações cidade-campo em matéria agroalimentar e agroambiental.
Ora, um dos grandes trunfos para esta década é, justamente, o hibridismo da relação cidade-campo, um híbrido de produção, consumo e conservação, que não só alarga os mercados de futuro como a tipologia de agriculturas AAA (agricultura, ambiente, alimentação) e a gama de produtos oferecida. Neste contexto, as comunidades locais inteligentes, apoiadas em plataformas digitais colaborativas, podem acolher muitos projetos e empreendimentos e oferecer uma gama variada de serviços de rede em diversas áreas, por exemplo:
- Os serviços ligados à agriculturas de precisão e aos modos intensivos de produção,
- Os serviços ligados às agriculturas de nicho, denominações e indicações geográficas,
- Os serviços ligados à logística dos circuitos curtos e mercados locais,
- Os serviços ligados à economia circular, bioeconomia e ecossistemas,
- Os serviços ligados às bioenergias e redes energéticas,
- Os serviços ambulatórios ao domicílio e os programas de envelhecimento ativo,
- Os serviços de reabilitação e restauro do património natural e construído,
- Os serviços de animação e produção de conteúdos para eventos criativos e culturais,
- Os serviços técnicos e tecnológicos ligados aos ambientes inteligentes e gestão SIG.
Notas Finais
Bastaria o elenco destes serviços para demonstrar como o nosso conceito de economia criativa é muito abrangente e multidisciplinar. A inteligência coletiva e a criatividade dos territórios estão perfeitamente ao nosso alcance e a presente metamorfose do capitalismo tecnológico e digital está a dizer-nos para não perdermos esta grande oportunidade. Uma dessas entradas mais promissoras é, justamente, a relação cidade-campo, o grande universo da 2ª ruralidade. Os jovens licenciados têm aqui uma excelente oportunidade para constituir as start up da 2ª ruralidade e os exemplos são muito diversificados: a construção de um sistema alimentar local (SAL), uma denominação de origem protegida (DOP), um mercado ou segmento de nicho, um complexo agroturístico com campo de férias e aventura, um sistema ou mosaico agroflorestal (SAF), um centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística, um parque agroecológico intermunicipal com objetivos de inclusão social, um parque biológico e ambiental em zona de montanha para estudo, visitação e recreio, entre outros.
Num país tão pequeno como o nosso precisamos urgentemente de construir plataformas colaborativas que juntem centros de investigação, jovens investigadores e associações de jovens empresários, visando, sobretudo, o reagrupamento de micro e pequenas empresas e explorações e a sua gestão agrupada multiprodutos. As escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas podem ser o pivot deste movimento da 2ª ruralidade, apoiando a introdução das TIC nas explorações agrícolas, redes de extensão rural e formação profissional e incentivando a próxima geração de empresários agrícolas e a vinda de neorurais para o mundo rural.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve
