Volto ao tema da valorização do interior, num tempo de grandes transições e quando se adivinha e avizinha mais um período de inflação/recessão que desencadeia as assimetrias do costume. É conhecido, o interior vive entalado entre o excesso de localismo e o excesso de centralismo e experimenta o chamado dilema do prisioneiro. Por um lado, a municipalização garante a proximidade aos munícipes e a distribuição dos pequenos poderes político-partidários, mas a sua pequena dimensão não assegura economias de escala e aglomeração com dimensão suficiente para inverter o ciclo de despovoamento e desertificação. Por outro lado, a administração central está numa posição aparentemente confortável na medida em que lhe permite configurar e gerir a administração regional desconcentrada da forma mais conveniente e dialogar com os municípios em posição quase sempre vantajosa. Sempre que se discute um novo período de programação de fundos europeus os compadres do país político voltam a reunir-se e uma nova edição do país bipolar, centralista e localista, tem lugar. Neste contexto, e em tempo de PRR e PT2030, vejamos alguns tópicos de discussão sobre a valorização do interior.
Corpo do artigo
Em primeiro lugar, antes de ser agrícola, florestal ou rural, o enquadramento correto do problema da valorização do interior deve ser colocado nos planos territorial e regional, isto é, no nível NUTS II e no quadro do Programa Operacional Regional (POR) onde a coordenação/integração de medidas e instrumentos é mais eficaz e equitativa;
Em segundo lugar, para dar consistência política a todo o exercício e criar uma cadeia de comando efetiva, deve ser criado o Ministério do Planeamento e Administração do Território (MPAT) e uma comissão interministerial para o mesmo efeito, como, de resto, já aconteceu no primeiro governo do Eng. António Guterres;
Em terceiro lugar, é necessário criar um pivot regional que tenha centralidade e racionalidade suficiente, de tal modo que o foco da política seja colocado no aprofundamento do regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR, intensificando e melhorando a sua implementação territorial e regional (abordagem mais funcionalista);
Em quarto lugar, no quadro do sistema operativo do POR deve discutir-se a melhor forma de operacionalizar as competências intermunicipais e sub-regionais das CIM adotando estruturas de missão que sejam adequadas para a gestão integrada dos instrumentos de política do território;
Em quinto lugar, deve discutir-se, no novo contexto territorial, se as estratégias de desenvolvimento local dos Grupos de Ação Local (GAL), traduzidas em programas de desenvolvimento local de base comunitária (DLBC), mantêm toda a sua pertinência e aderência ao território; seja como for, o eixo do desenvolvimento rural deve ter expressão própria no POR no quadro da política de coesão territorial;
Em sexto lugar, a centralidade do regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR deve implicar a criação de um conselho executivo regional, um serviço regional de planeamento e administração do território e equipas de missão multisserviços para a gestão das comunidades intermunicipais (CIM) e/ou redes de municípios;
Em sétimo lugar, deve discutir-se a pertinência operacional dos programas de desenvolvimento territorial das CIM, creio que será mais útil a criação de plataformas territoriais e estruturas de missão multisserviços que possam servir várias CIM;
Em oitavo lugar, o modelo do silo administrativo, setorial e vertical, e respetivas cativações orçamentais, despejando medidas avulsas para cima dos territórios está esgotado; o sistema operativo dos POR é o quadro apropriado para a criação de um ecossistema tecnológico e digital de base regional que mobilize os incumbentes principais e os cidadãos a esta escala por meio de plataformas de inovação participativa e colaborativa;
Em nono lugar, e serve de aviso à navegação burocrático, os territórios locais e regionais correm o sério risco de serem fortemente condicionados pelo sistema de governação algorítmica atuando à distância e praticamente invisível; este facto é inegável e chama a nossa atenção para a necessidade absoluta de um programa intensivo e extensivo de literacia digital, sob pena de infoexclusão;
Por último, a inovação territorial no quadro do POR e das CIM não pode ser reduzida às plataformas e à informática de gestão e administração; é necessária uma nova cultura de ordenamento urbanístico com relevo para as redes de pequenas e médias vilas e cidades do interior e, igualmente, uma nova relação cidade-campo, no âmbito do pacto ecológico europeu, em direção à 2ª ruralidade.
Sendo este o sistema operativo que julgamos mais recomendável, os nossos territórios locais e regionais estão, agora, confrontados com os planos de investimentos que devem adotar para esta década no quadro do PRR 2026 e do PT 2030. Neste contexto,
a questão, porventura, mais pertinente será estabelecer uma tipologia de investimentos que respeite os objetivos, as escalas e as redes que são fundamentais para termos investimentos, públicos e privados, efetivos e com retorno garantido. Mais uma vez, tudo depende da unidade e da voz de comando e do modo como for concebido o sistema operativo respetivo. Vejamos as principais opções:
- Em primeiro lugar, a reparação dos bens públicos locais tendo em vista repor equipamentos, infraestruturas e serviços que sofreram a erosão dos últimos anos;
- Em segundo lugar, a promoção dos bens públicos de rede intermunicipais entre vilas, cidades pequenas e médias do interior tendo em vista consolidar a sua malha, aumentar os seus efeitos de aglomeração e, portanto, a sua área de influência;
- Em terceiro lugar, a promoção do plano de infraestruturas de rede regionais e nacionais, por exemplo, a renovação da ferrovia, o reforço da rede de barragens, o saneamento das bacias hidrográficas, o melhoramento da rede rodoviária, a ligação dos centros hospitalares, a renovação do parque escolar;
- Em quarto lugar, a promoção do plano de investimentos relativo à smartificação do território, desde a rede digital de alta velocidade até às suas interligações inteligentes, em particular, a criação de alguns polos regionais de inovação que servem de base à smartificação dos territórios do interior;
- Em quinto lugar, a promoção das infraestruturas ecológicas e os investimentos agroambientais e agroflorestais de ordenamento do território, tendo em vista reduzir os riscos ambientais e climáticos destes territórios;
- Em sexto lugar, a promoção de um sistema de incentivos fiscais e financeiros às empresas que se queiram instalar nos territórios do interior e que são variáveis com o número de empregos criados, com uma menção especial ao turismo de vilas e aldeias, as suas redes e a valorização dos seus sinais distintivos territoriais, tendo em vista atrair novos investidores, residentes e visitantes;
Finalmente, é na composição deste mix instrumental que está o segredo da estratégia de desenvolvimento territorial, uma vez que não há utilities sem smartificação, que não há consolidação das áreas de influência sem o reforço das redes urbanas do interior, que não há gestão do risco sem planos verdes de gestão do mosaico florestal e paisagístico, que não há investimento empresarial sem o reforço das várias interligações logísticas, sem uma economia residencial e de visitação. Esta tipologia de opções de investimento mostra, sobretudo, a importância da sua articulação no espaço e no tempo, a sua coordenação no quadro do POR, o lugar central desempenhado pelo sistema operativo regional e, neste âmbito, a negociação política em redor do envelope orçamental plurianual que, obviamente, poderá ser sempre ajustado ao longo da década.
Nota Final
Numa aceção mais ampla, valorizar o interior significa colocar questões fundamentais e dar-lhes uma resposta apropriada, por exemplo: que modelo de desenvolvimento territorial, que escala e tipologia de bens e serviços, quais os beneficiários do novo modelo, qual o seu escalonamento temporal, que parcerias e modelo de financiamento, que papel para as tecnologias digitais, que modelo de governação do território?
O modelo de governação atual, apesar do processo de descentralização em curso, ainda consagra o país bipolar, é muito conservador e mantém a sua tradicional vocação clientelar. Dificilmente responderá às questões enunciadas anteriormente, mesmo que proceda aqui e ali a alguns ajustamentos. No final, a pergunta de sempre: como vamos ocupar o território?
- Vamos ocupar o território com gente de carne e osso colocada in situ?
- Vamos plantar dispositivos tecnológicos e digitais um pouco por todo o lado e esperar que eles debitem informação relevante nas nossas centrais de dados colocadas ex situ?
Não temos resposta para estas interrogações, resta-nos aguardar que haja bom senso quanto baste para encontrar o ponto de equilíbrio ecológico e digital mais apropriado a uma boa ocupação do território. Uma última referência à chamada transição digital que se imporá pela força do negócio digital. O centralismo político regozija-se com a transição digital, seja de Bruxelas ou das capitais, porque lhe facilita a liquidez do sistema e, portanto, o seu condicionamento e regulação territorial. É, apenas, mais um aviso à navegação política dos territórios locais e regionais.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve