O esfaqueamento de Salman Rushdie (o assassinato da filha do ideólogo russo Dugin assume características muito diversas) tem, em termos civilizacionais, implicações globais bem mais graves do que as que decorrem dos resultados do inquérito europeu segundo o qual, num conjunto de 500 juízes portugueses que a ele responderam, 26% dizem acreditar que alguns juízes receberam subornos nos últimos três anos e 27% acreditam em irregularidades na distribuição de processos judiciais. É este último o assunto que irei abordar em primeiro lugar. Não tenho ilusões acerca da minha capacidade para influenciar os outros, mas é minha obrigação começar por opinar acerca dos problemas que me são mais próximos, mais não seja para "lavar a minha alma" e para que nunca possa ser afirmado que, com o meu silêncio, pactuei com esta vergonha.
Na verdade, esse resultado demonstra que esses juízes não se comportaram como tal, mas antes como cidadãos e cidadãs normais que decidem face a meras aparências. Ora, acontece que os juízes não podem, de todo, ser cidadãos e cidadãs normais, porque os julgamentos com base na mera aparência só são admissíveis nas decisões a tomar nas providências cautelares (e mesmo aí apenas no que respeita à verosimilhança da existência do direito que se afirma estar a ser violado, porque, quanto à prova da efetiva violação, esta apreciação segue as regras gerais). As decisões judiciais só podem assentar em factos que estão provados nos processos para além de qualquer dúvida razoável (artigo 346 do Código Civil). Portanto, os juízes que produziram aquelas afirmações genéricas e insultuosas para todos os demais juízes (diferentemente seria se tivessem referido que foram iniciados, indicando o número concreto, processos em que juízes foram acusados de corrupção) mostraram desconhecer o que significa ser titular de um poder de soberania. O que não me espanta, porque ninguém nasce juiz (há que aprender a sê-lo) e o Centro de Estudos Judiciários há décadas que se dedica a formar funcionários, sem cuidar de transmitir o significado e a profundíssima relevância ética e social desse conceito civilizacional. Só essa razão (mas muitas outras existem, como venho afirmando há mais de 20 anos) deveria ser suficiente para encerrar esse Centro de Formação e voltar a refundá-lo depois de uma profunda, mas transparente e participada, discussão sobre o que o mesmo deve ser e como deve funcionar.
Breves desabafos finais. Para quando os estudos acerca dos procuradores que, ao contrário dos juízes, mercê do estupendo Código de Processo Penal (que, desde antes da sua entrada em vigor em 1987, venho apontando como sendo tudo menos liberal e democrático), podem agir sem qualquer controlo na direção dos inquéritos, nomeadamente nos casos de arquivamento? E quanto às distribuições, será que alguma vez será discutido se, como agora acontece, as mesmas podem continuar a ser realizadas usando um computador de um instituto (IGFEJ) do Ministério da Justiça? Bem fazem os advogados que não vão assistir às distribuições. Para fazer figura de corpo presente já basta o juiz distribuidor.
*Juiz desembargador jubilado
