Ao partir do reino dos vivos, Pelé mais uma vez surpreendeu-nos ao juntar as metáforas e simbolismos próprios das narrativas míticas, com as histórias factuais e fantasiadas das suas extraordinárias e sobre-humanas qualidades, tão peculiares nas lendas.
Em todo o mundo surgiram simultânea e apropriadamente, as memórias e os relatos a enaltecerem a genialidade, ainda mais com a aura mística pela ausência dos então improváveis registos fílmicos, logo ele que calcorreou (como era prática nos idos de 60 e 70) com o Santos, como uma estrela de cinema, muitas "quadras" no mundo, em digressões avidamente concorridas em estádios dos vários continentes, onde foi aspergir magia que só dezenas de milhar de abençoados conseguiam testemunhar de cada vez. Poucos vídeos, poucos registos, estava só então a nascer no Desporto a primeira personagem global, ainda antes da globalização. O ícone que transformou o paradigma do Desporto, levando o Cosmos (curiosa e provocadora concordância...) de Nova Iorque, a capitalizar a imagem da vedeta de dimensão planetária e relançar o futebol nos EUA.
Paradoxalmente, a crua razão do seu desaparecimento, no entanto, atira de novo (tristemente, de novo) para a frente da nossa consciência e dos nossos olhos (distraídos, entorpecidos ou irresponsavelmente indiferentes) a plangente realidade sombria e letal da principal causa de morte por cancro em Portugal. Sim, dos 7 mil novos casos anuais de cancro do colon e recto diagnosticados entre nós, veremos partir 11 portugueses por dia por sua causa...a grande ironia de corresponder a uma equipe de futebol (o "jogo bonito" que o imortalizou) que desaparece do nosso seio, e nem mesmo recordando este facto temos conseguido inverter essa situação. Em nome da luta contra o omnipresente cancro do intestino, fizemos iluminar de azul (como em várias cidades no Mundo), o Cristo Rei e a Torre dos Clérigos, no dia 21 de março de 2022. Dizíamos enfaticamente "seja pontual, principalmente com a sua saúde". Não nos devemos deixar atraiçoar pelo assassino silencioso, sobretudo porque temos armas para o evitar ou detectar a tempo. Por isso, filmamos depoimentos, apelamos à consciência cívica, invocamos a responsabilidade individual e colectiva.
Curiosamente, também o mundo da imagem gravada e do cinema atrasou-se ao não acompanhar Pelé na sua peregrinação universal de corridas, dribles, domínios, antecipações, pontapés, cabeceamentos, gambetas e reviengas! Só o maldito, infame e magnifico Pier Paolo Pasolini - a propósito do Brasil-Itália que ditou o seu 3º título mundial - proclamou o momento poético do futebol: a última representação sagrada no nosso tempo "um ritual e uma evasão, um espetáculo que substitui o texto". Construíram-se mitos, lendas e relatos à sua volta, verosímeis, reais, questionáveis, alimentando uma personalidade global, que arrebata, intemporal e implacavelmente, os corações dos amantes de futebol. Afinal, sempre chegou a fazer de guarda-redes (total:37 minutos!), e não sofreu nenhum golo nesses 4 jogos? (em que ele próprio tinha facturado 7 golos?) Afinal, o golo 1000 não foi mesmo 5 dias antes do que
historicamente é considerado? E só foi expulso uma vez na vida, e a pedido do publico essa decisão foi revertida? (ou viu mesmo o cartão vermelho por 13 vezes?) ...e sempre prometeu ao Pai, " eu juro que vou ganhar a Copa do Mundo para o senhor" nos despojos do dia da traição uruguaia no Maracanã?
Tantos escritores e jornalistas famosos o eternizaram antes mesmo de ter partido: Carlos Drummond de Andrade, Ruy Castro, Armando Nogueira, Edilberto Coutinho, Eduardo Galeano, Nelson Rodrigues... melancolicamente, lembrei-me muito deste último, nestes dias de dolência, da sua expressão sobre Garrincha (o outro ilusionista do escrete), "ele anda por aí, com uma saúde de centauro bem-alimentado!" ... Já não anda mais. O nosso indomável herói, que deu o pontapé de saída para a globalização do Futebol e que dotou o Brasil com a aura vibrante e colorida do "jogo bonito" (para usar as suas palavras), foi lugubremente conduzido ao panteão nos braços mortais dum cancro evitável e prevenivel.
Embora as legiões de adeptos consigam hierarquizar os seus deuses no Olimpo (como os esdrúxulos irlandeses que clamam por Maradona-good, Pelé- better, George Best) a Glória transcende a paixão e o arrebatamento: eleva e sublima um ícone até à memória colectiva universal. A essa recordação, a esse movimento reflexivo e retrospectivo, teremos de acrescentar permanentemente que nas nossas mãos, nas nossas decisões, há sempre algo mais que devemos fazer, ou contribuir ou proporcionar: isso é tão valido para a nossa vida de relação como para a nossa vida biológica interior. A genialidade de Álvaro Magalhães recorda-nos que "o futebol concede-nos uma outra vida, com tudo o que a vida tem". Que nos conceda também a lucidez e a bem-aventurança de despertar com tempo e de agir a tempo.
Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia*
