Em plena transição climático-ecológica os materiais raros do mundo rural português denominam-se solo, água, microclimas, biodiversidade, ecossistemas e serviços de ecossistema.
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A única certeza que temos é que, no futuro próximo, por causa desta dupla transição, ecológica e digital, o campo nos revelará uma pluralidade de campos, na exata medida em que o campo será simultaneamente um espaço produtor e um espaço produzido. Assistiremos, em especial, à chegada dos neorurais, uns mais capitalistas, outros mais românticos, uns mais digitais, outros mais ecodigitais e com eles chegará o movimento starting-up cada vez mais ousado e que mudará para sempre o fácies do velho mundo rural português.
A grande questão será, então, esta: como é que podemos incubar e acelerar a passagem de um rural tardio, pobre e remediado, para um neorural inteligente e criativo, a caminho da 2ª ruralidade?
As comunidades inteligentes e o movimento starting up
O espaço rural é, simultaneamente, um espaço produtor e, cada vez mais, um espaço produzido. O mundo rural é, hoje, um palco imenso onde se desenrolam todas as representações do mundo atual, das mais paroquiais e populares às mais cosmopolitas e sofisticadas. Em boa verdade, trabalhamos mais com representações do mundo rural, quase todas de proveniência e inspiração urbanas, do que com o mundo rural propriamente dito. Estamos, portanto, numa situação transitória em que os valores específicos da ruralidade, mais tradicionais ou mais modernos, são objeto de apropriação por atores muito diversos que os usam para estratégias muito variadas. O que importa realçar, nesta altura, é a evidência de que o espaço rural se transmutou de espaço-produtor em espaço-produzido. Esta transmutação, feita essencialmente por agentes citadinos ou urbanos, significa umas vezes verdadeira modernização agrária, outras vezes conservacionismo ambiental, outras turistificação vinícola, oleícola ou cinegética, outras vezes, ainda, simples elemento decorativo para eventos mais ou menos cosmopolitas, aproveitando a amenidade de uma barragem, de um rio ou outra ocorrência aprazível. Seja como for, os vários futuros do mundo rural já se anunciam. Eis uma breve incursão a esse tempo do futuro.
Os mercados de futuro e os neorurais que chegam
Uma primeira nota diz respeito aos mercados de futuro e aos neorurais que buscam
o mundo rural. Os principais mercados de futuro do mundo rural já aí estão. Eles estarão, certamente, na confluência de cinco grandes vetores emergentes: a biotecnologia, a agroecologia, a biodiversidade, os ecossistemas e as paisagens globais. Eis os seus principais mercados:
- Os mercados agrotech relativos à agricultura de precisão,
- Os mercados agrobio relativos à agricultura biológica e ecológica,
- Os mercados do carbono e o papel dos fundos de investimento no sequestro do carbono,
- Os mercados da água, da água da rede às águas recicladas e dessalinizadas,
- Os mercados da biodiversidade, dos ecossistemas e serviços de ecossistema,
- Os mercados da paisagem, arquitetura, engenharia biofísica e artes da paisagem,
- Os mercados dos 4R: reduzir, reciclar, reparar e reutilizar,
- Os mercados de nicho, denominação de origem e marca coletiva,
- Os mercados da mitigação, adaptação e restauração face às alterações climáticas,
- Os mercados dos alimentos funcionais ligados à biotecnologia alimentar,
- Os mercados da microgeração, poupança e eficiência energéticas,
- Os mercados da prevenção, rastreabilidade e segurança dos produtos,
- Os mercados do agroturismo e do turismo em espaço rural.
Para estes mercados do futuro é preciso sensibilizar e mobilizar toda a gente. Os amigos do campo são cada vez em maior número, falta saber se é possível mobilizá-los para empreender e agir em espaço rural. Eis alguns dos amigos do campo, os neorurais do próximo futuro: os startupers tecnológicos para quem o campo cabe dentro de uma "app", os nostálgicos românticos, para quem o campo é um campo de mil evocações, os peri-urbanistas pendulares dos circuitos curtos e mercados de proximidade, os ecologistas militantes sempre disponíveis para as inovações agroecológicas, os turistas da natureza e os desportistas radicais para quem o campo é uma experiência plena de emoções fortes, os paisagistas do ordenamento e da conservação, os agricultores integralistas e os patrimonialistas da cultura para quem o campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica. Mas temos, ainda, os sequestradores de carbono, os prosumidores de energia em busca de uma oportunidade de investimento, os arquitetos da construção sustentável e as inúmeras modalidades de alojamento local e turismo rural. Como se observa, temos um universo muito variado de recrutamento que está já em pleno movimento.
As atividades emergentes da 2ª ruralidade
As comunidades inteligentes do próximo futuro nascerão, justamente, desta associação virtuosa entre, de um lado, os mercados de futuro e, de outro, a curiosidade e iniciativa dos neorurais. Vamos passar em revista algumas áreas de atividade onde essa associação irá ocorrer.
1) A agricultura de precisão
Vem aí a internet dos objetos e consequentemente, a indústria dos objetos conectados. Doravante, podemos fazer plantações de sensores para conectar estes objetos, isto é, tudo será smart, mais tarde ou mais cedo: a cidade, a habitação, a fábrica, o hospital, o aeroporto, a universidade, o automóvel, o centro comercial, mas, também, o campo agrícola, a empresa pecuária, a floresta, o parque natural, a bacia hidrográfica, etc.
Vejam-se, por exemplo, os avanços tecnológicos já conseguidos no domínio da chamada agricultura de precisão: a gestão remota da rega. a monitorização das culturas a partir de imagens aéreas (com drones), as câmaras de vigilância nos estábulos, os robots de ordenha e alimentação, os chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida, os veículos autónomos como maquinas agrícolas e tratores (winebots), a colocação de sensores na floresta (os olhos e os ouvidos das árvores), as câmaras térmicas (os olhos noturnos dos bombeiros), as imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos, os firebots para o ataque a incêndios, a criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros, os modelos computacionais e a inteligência artificial para a elaboração de cenários de intervenção, etc. Quer dizer, no âmbito da internet das coisas (IOT) e dos sistemas automáticos praticamente nada escapará aos dispositivos de monitorização, sejam sensores, chips, drones ou câmaras de vigilância; neste caso, em concreto, podemos dizer que a rastreabilidade é total e a recolha e tratamento de dados uma tarefa primordial para a agricultura de precisão.
Se a esta plantação-conexão digital juntarmos a constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias, as biotecnologias, as ciências da vida, do solo e da água e as indústrias da alimentação, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da atual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo, geridas à distância por seres aumentados que administram interfaces eletrónicos e digitais de todo o tipo. Em resumo,
há aqui um campo imenso para novas especialidades e novas oportunidades para as novas gerações de start-up da 2ª ruralidade.
2) As agriculturas pós-produtivistas e hipo carbónicas
Paralelamente à agricultura de precisão surgirão as denominadas agriculturas pós-produtivistas, umas mais sociais e comunitárias, outras mais especializadas. As alterações climáticas, as economias de proximidade e a alimentação saudável, mas, também, os pagamentos pela prestação de serviços ambientais, funcionarão como pretexto e causa próxima e despertarão uma curiosidade crescente por parte dos neorurais. Acresce que, dadas as características agroecológicas e socioeconómicas de muitas das nossas microrregiões do interior, o mais provável é que sejam objeto de uma smartificação fraca associada à lógica agroecológica ou, nas palavras do Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, ao organicismo da paisagem global.
De resto, a paisagem global de Gonçalo Ribeiro Telles é um mosaico muito complexo e interdependente onde cabem a conservação da natureza, a produção de alimentos frescos, as amenidades agroturísticas e a gestão das áreas de paisagem protegida, de acordo com critérios técnicos, mas, também, estéticos e éticos. Há, pois, neste contexto, muito trabalho de investigação-ação-extensão a realizar e um campo imenso para a emergência da próxima geração de start-up a caminho da 2ª ruralidade.
3) Turistificação e produção de novas amenidades e conteúdos
A modernização do mundo rural pela via dupla da agricultura de precisão e da agricultura pós-produtivista tem como corolário lógico um aumento da turistificação do mundo rural e, consequentemente, a necessidade de produzir novas amenidades e conteúdos criativos e culturais, em especial em redor dos chamados sinais distintivos territoriais. Esta implicação recíproca vantajosa entre agricultura, ecologia, turismo e cultura é fundamental para criar in loco pequenas economias de aglomeração que justifiquem o lançamento de novos projetos empresariais. As plataformas tecnológicas facilitam estas transações e aqui, mais uma vez, as start-up terão um papel fundamental no desenho de aplicações digitais que fazem a conexão destas diferentes atividades, para além da produção especifica de conteúdos criativos e culturais. Todos os sinais distintivos emitem informação bruta que é preciso recolher e tratar devidamente, razão pela qual é fundamental conceber o sistema de informação geográfica da sub-região e ensaiar a sua conexão inteligente. A partir desse volume imenso de informação a arte da
composição permitirá compor uma variedade de territórios virtuais de onde emergirá uma nova consciência coletiva territorial. Porque precisamos de criar conteúdos para preencher essas diversas virtualidades, existe aqui mais uma oportunidade para o lançamento de novos projetos e empresas.
4) A smartificação dos territórios-rede da 2ª ruralidade
Os territórios-rede da 2ª ruralidade são uma malha fina e delicada de pequenos empreendimentos muito bem articulados entre si, verdadeiros laboratórios para testar pequenas economias de aglomeração. O segredo do sucesso destes territórios-rede é a instituição de um ator-rede que seja capaz de ouvir, interpretar, promover e realizar as aspirações de um território que é sentido e desejado. Apresento a seguir uma série de exemplos, que são outras tantas configurações sociais de territórios-rede, uma espécie de arquitetura de interiores de uma região:
- Um sistema alimentar local (SAL),
- Um mercado de nicho, denominação de origem protegida (DOP) ou marca coletiva,
- Um complexo agroturístico com campo de férias e aventura,
- Uma rede de turismo de aldeias e touring de natureza,
- Um sistema ou mosaico agroflorestal (SAF),
- Um centro de investigação em ecologia funcional e arquitetura paisagística,
- Um programa de desenvolvimento e condomínio de aldeias serranas e de montanha,
- Um parque natural ou geoparque,
- Um Parque Agrícola Intermunicipal com objetivos de institutional food,
- Uma Quinta Pedagógica, Recreativa e Terapêutica,
- Um centro de experimentação, formação e extensão rural
Em todos os casos referidos de território-rede, o propósito é sempre o mesmo: a valorização de recursos escassos e expectantes, a formação de uma nova cadeia de valor, uma ação coletiva inovadora, um ator-rede inteligente e uma comunidade de autogoverno eficaz. A criação de um ecossistema digital de base territorial pode ajudar, as instituições de ensino superior podem ajudar na formação das parcerias locais e dos atores-rede. Imagine-se o número de start-up inovadoras que podem ser criadas em redor de todos estes territórios-rede.
5) As estruturas de acolhimento e a Smart CIM
As estruturas de acolhimento como os espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, as associações de desenvolvimento local, têm sido até agora os locais privilegiados para fazer nascer os novos empreendimentos. No entanto, estas estruturas não têm correspondido às expectativas e há uma baixa efetividade destes instrumentos de intervenção no território que, julgamos, se deve à fraca intensidade-rede das economias locais do mundo rural. O conceito de Smart CIM da comunidade intermunicipal procura responder a essa falha estrutural. Quer dizer, precisamos de uma estrutura de autogoverno dotada com um mínimo de população, atribuições, competências e meios, que seja capaz de articular os poderes setoriais e intermunicipais com as expetativas das populações expressas através de recursos digitais e suscitar os efeitos de aglomeração e escala que o território mais necessita. A Smart CIM poderia ser o ator-rede indicado para esse efeito.
6) Uma tipologia das start-up da 2ª ruralidade
Chegados aqui, estamos em condições de elaborar uma primeira tipologia de start-up da 2ª ruralidade. A economia digital e as plataformas colaborativas serão um instrumento fundamental para alavancar estes novos projetos empresariais:
- As agriculturas de precisão, os serviços tecnológicos ligados aos modos intensivos,
- As agriculturas de nicho, denominações de origem e indicações geográficas,
- As agriculturas sociocomunitárias, os circuitos curtos e os mercados locais,
- A economia circular e a bioeconomia, a política dos 4R e os serviços ambientais,
- As energias renováveis e as bioenergias, as redes e os serviços energéticos,
- Os serviços ambulatórios ao domicílio, os programas de envelhecimento ativo,
- Os serviços de reabilitação e restauro do património natural e construído,
- Os serviços de produção de conteúdos para eventos criativos e culturais,
- Os serviços de alojamento em agroturismo e turismo rural,
- Os ambientes digitais inteligentes e a gestão dos sistemas de dados e informação.
A convergência entre a transição digital e transição ecológica será o grande motor desta nova fase. Se esta convergência for devidamente patrocinada poderemos estar na iminência de um movimento de start-up em espaço rural, embora nada garanta que elas não apareçam em ordem dispersa. Quer dizer, em vez de termos economias de
aglomeração, poderemos ter economias de dispersão. Se tudo correr bem, poderemos ter uma economia colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos, e onde o capital social será tão ou mais decisivo que o capital financeiro.
Nota Final
Se pensarmos nos centros de investigação e laboratórios das universidades e escolas superiores agrárias, existentes em todas as capitais de distrito, mais as escolas profissionais agrícolas, se pensarmos no universo associativo dos municípios, das associações de desenvolvimento local e das associações empresariais, se pensarmos no movimento starting up em crescimento e nos jovens empresários neorurais envolvidos, se pensarmos no volume de meios financeiros disponíveis nesta década, temos à nossa frente uma perspetiva de futuro muito prometedora. O principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste universo em movimento é o modelo silo vertical completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão burocrática e corporativa. A principal tarefa do próximo futuro é realizar a quadratura do círculo e pôr de acordo universidades e politécnicos, associações de municípios, associações empresariais e serviços regionais e no interior deste quadrado criar um centro de racionalidade transversal (CCDR e/ou CIM e/ou DRA) que seja capaz de criar dimensão crítica nas parcerias público privadas e pôr alguma ordem na cacofonia ecológica e digital do mundo rural que também vai chegar.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve