De repente somos bombardeados com informação sobre mais um tema fraturante na sociedade portuguesa, desta vez com múltiplas notícias relativas aos benefícios do uso da canábis em novas soluções terapêuticas. É uma delícia assistir às inúmeras intervenções da inteligência dominante sobre os milagres e o potencial global das mensagens enviadas para o interior das células, através da ligação dos canabinoides a recetores localizados na superfície das mesmas. Para mim, que sempre acreditei na importância da evolução da ciência, é fascinante assistir ao brotar de sapiência desta inatingível elite intelectual. Ressalvada a evidência da investigação científica relativa ao potencial positivo do uso da referida substância, a espécie de panaceia como a mesma nos é agora vendida fez-me recordar os tempos idos do liceu, em que no gabinete médico tudo se curava com uma Aspirina, da dor de cabeça ao joelho a sangrar por uma queda deslizante durante um jogo de futebol no "relvado feito de alcatrão áspero". E garanto que a lembrança não é fruto de um qualquer efeito da ingestão da substância em causa, dado que nunca atingi sequer o estatuto de simples utilizador de um SG-Filtro.
Enquanto discutimos os efeitos da "fumaça", os hospitais e centros de saúde reclamam por enfermeiros e lençóis, ambos a sair a conta-gotas do estreito funil em que o Ministério das Finanças vai naturalmente mantendo o país, em prol da necessidade de controlo da despesa pública, seja com reflexos difundidos nos atrasos no reforço de enfermeiros para o pico do surto anual da gripe, na passagem do dinheiro garantido ao Ensino Superior em 2017 para o ano seguinte, nos auxiliares que as escolas aguardam, ou nos centros de saúde abertos que afinal ainda não o foram.
A questão que tem que se colocar de forma aberta é se não valeria a pena ter prolongado um pouco mais no tempo a devolução de alguns, poucos, euros mensais, a quem deles menos precisasse, por forma a manter setores fundamentais do serviço público em patamares confortáveis de dignidade? No que a mim me diz respeito sou claro, preferia manter parte dos meus impostos ao serviço do coletivo social do que os ver vaporizados na anestesia de uma qualquer fumaça.
Não valeria a pena ter prolongado um pouco mais no tempo a devolução de alguns, poucos, euros mensais, a quem deles menos precisasse, por forma a manter setores fundamentais do serviço público em patamares confortáveis de dignidade?
* PROF. CATEDRÁTICO, VICE-REITOR DA UTAD
