O dossiê do Infarmed é o exemplo perfeito de como em política é possível dizer-se uma coisa hoje, o contrário amanhã e ainda o avesso do contrário no dia seguinte, passando tranquilamente por entre os pingos da chuva. O que começou por ser anunciado como facto consumado tornou-se matéria de estudo, acabando numa desistência disfarçada de pausa: para não ter de admitir que recuava, o Governo remeteu o assunto para a Comissão Independente para a Descentralização.
Quando, há um ano, António Costa colocou o assunto nas mãos da comissão, todos já tínhamos percebido que o assunto Infarmed era para enterrar. Ainda assim, se houvesse coerência e seriedade nas promessas feitas ao país, o primeiro-ministro teria de se pronunciar publicamente, à luz das recomendações inscritas no relatório divulgado em julho. E o programa eleitoral do PS teria de assumir o que pensa fazer em matéria de desconcentração de serviços públicos.
Só que falar com clareza em período eleitoral pode ser prejudicial e é mais simples inscrever expressões vagas, como "estimular o trabalho à distância", do que apresentar propostas arrojadas ou sobre as quais no futuro possam ser pedidas contas. Desconcentração e luta contra as assimetrias regionais? Claro que todos os partidos são a favor. Desde que continuemos a fingir que nos preocupamos muito com todo o território, sem mexer uma palha contra a imutável centrifugação de Lisboa.
Esta semana, num artigo de opinião, Ana Abrunhosa, presidente da CCDR do Centro (com largas faixas de território despovoado na Beira Interior), apelava a que se abandonasse o discurso politicamente correto e se falasse verdade, assumindo que em importantes porções do país não se poderá recuperar população e que coesão significa "gerir o declínio". A leitura é pragmática e honesta: dezenas de povoações vão morrer nos próximos anos. Mas será preferível, então, que nos digam claramente de que partes do país desistimos e que políticas temos para essa gestão do declínio. É uma verdade incómoda, mas como cidadãos temos direito a ela.
*Diretora-adjunta
