De Peso de Régua para o mundo, Marcelo martelou, no bom sentido, Portugal no seu dia, sábado passado.
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É um costume dos chefes de Estado aproveitarem o ensejo para reclamar "desígnios nacionais". Há praticamente cinquenta anos que parece ter-se perdido, algures, esse "desígnio" tantas são as vezes e as ocasiões em que o mesmo é invocado para nada. Eanes não recolheu em livros as suas intervenções presidenciais, mas, até pelas circunstâncias em que assumiu o mais elevado cargo da nação, não se furtava nunca a apontar caminhos à sociedade e aos agentes político-partidários. Soares, Sampaio e Cavaco Silva puseram tudo por escrito em fartos volumes para a história. Marcelo faz constar que não quer memórias e, aparentemente, é mais dado a álbuns fotográficos do que a livros em sentido estrito. O site do Palácio de Belém é um deserto comparado com o do seu imediato antecessor. Uma "geração". Já Guterres, primeiro-ministro, não lavrava nada para a posteridade enquanto tal. Marcelo talvez pressinta a fugacidade de tudo, por formação e fé, tal como o actual secretário-geral da ONU.
Todavia, há dias e dias. Neste "10 de Junho", o presidente, no "interior", chamou um senhor dos vinhos para fazer as honras da casa. E, qual Margaret Mitchell a propósito de Tara em "E tudo o vento levou", Marcelo quer "começar de novo", dar "novo viço ao que disso precisar". Plantar. Semear. Podar. Cortar "ramos mortos que atingem a árvore toda". Já vimos o filme, num "trailer" no princípio de Maio. Mas há mais. O presidente quer "que os Pesos das Réguas do nosso interior sejam tão importantes como as Lisboas, os Portos, as Coimbras". Também andamos a assistir a este filme há quase cinquenta anos. Aí Marcelo, recordando o amigo Guterres, perguntou: "De que nos serve a influência externa se dentro de portas temos problemas por resolver? Se temos mais pobreza do que riqueza, mais desigualdade do que igualdade?" Boa pergunta diante de um primeiro-ministro que fez da cerimónia uma provocação ao presidente, mandando comparecer dois dos ministros que Marcelo especialmente não suporta, um dos quais devia estar demitido.
Como escreveu Vasco Pulido Valente, no "Público", a propósito do 10 de Junho de 2011, "ficaram ainda na televisão e nos jornais multidões de génios com o diagnóstico e cura da crise portuguesa no bolso, falando ininterruptamente como se nos tencionassem salvar amanhã de manhã. São economistas, engenheiros, médicos, políticos, gestores, filósofos, funcionários, diplomatas, mil e uma espécie de amadores, cada um com a sua loucura e a sua importância. Ninguém quer ou consegue responder à pergunta crucial: como se chegou aqui?" É isso. Como é que chegámos a esta fantochada, parafraseando a esposa do primeiro-ministro ao dirigir-se a um manifestante, talvez esquecendo-se do tempo em que ela mesma se manifestava contra Maria de Lurdes Rodrigues?
E como quer Marcelo "viço" no meio de tanto ranço? Para o ano, serão feitas as mesmas perguntas noutro qualquer deserto material de almas do Portugal "profundo". Desenganem-se os que acham que vão começar tudo de novo. Desengane-se, sobretudo, Marcelo. Com esta gente, com certeza não vai a lado algum.
*Jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia