Sem saber bem porquê, a conversa de amigos duma destas noites acabou ao som de "Born to be alive", "Thriller" e "The final countdown", num lugar da noite de Lisboa por onde o tempo não passou.
A discoteca Primorosa de Alvalade é uma espécie de cápsula espácio-temporal onde a única coisa que mudou, dos anos 80 para cá, foi o tamanho da barriga dos senhores, o penteado armado das meninas e o uso de telemóveis. Não fossem estes e a reconstituição histórica era garantida.
Mas há mais neste sítio do que um simples regresso ao passado. Olhando com atenção, a Primorosa é uma espécie de tubo de ensaio social que se situa algures entre o Mito da Caverna de Platão e a Teoria da Relatividade de Einstein. Para os crentes, pode ser uma verdadeira experiência religiosa.
Quando se descem os degraus que levam às salas decoradas a rigor e à playlist memorável das músicas que foram êxitos da rádio há mais de 40 anos, sente-se uma espécie de epifania.
Entrar num lugar onde os visitantes são a própria exposição põe-nos a pensar. Mas afinal o que realmente mudou desde as calças à boca de sino até à rede 4G?
Aqui em baixo, todos continuam a beber e a conversar como antigamente, entregues aos rituais centenários de convivência social, mas os aparelhos de teclas luminosas mudaram tudo para sempre.
Já não se mete conversa, trocam-se whatsapps; já não se contam histórias, comentam-se posts; já não se pedem beijos, deslizam-se dedos para a direita, no Tinder, no Bumble ou no Happn; e já não se combinam lugares de encontro em segredo, partilham-se localizações por Google Maps.
Antes, eram os amigos que nos apresentavam amigas giras e solteiras, hoje é o telemóvel que faz tudo. É certo que acabamos por poder contactar mais pessoas, mas será que conhecemos mais gente?
Comendo um prego malpassado na zona livre de fumo da Primorosa, que dá pelo sugestivo nome de "Cyrose", recordo o Mito de Platão e pergunto-me. Afinal, onde está a realidade?
Mas antes que me surja qualquer resposta, um olhar penetrante e lânguido atinge-me com a Relatividade Geral e fico com certeza absoluta de que preciso de sair desta distorção espácio temporal.
Olho para o telefone apenas para saber onde estou, mas o GPS responde-me que está na hora de ir para casa.
*ESPECIALISTA EM MEDIA INTELLIGENCE
