Manter a confiança é glorioso e quebrá-la é uma desgraça. Este é o princípio de uma polémica aplicação chinesa que constrói um ranking de classificação social dos seus cidadãos. O atual objetivo do Governo chinês é distinguir os bons dos maus cidadãos, embora as causas primeiras deste projeto fossem identificar a corrupção governamental e combater a contrafação de produtos.
A ideia é tão assustadora como a vida ficcionada de Lacie Pound, uma personagem do primeiro episódio da terceira temporada da série "Black mirror" que, num mundo onde as pessoas são classificadas com estrelas, necessitava de um índice de aprovação suficiente para se poder mudar para uma habitação de luxo.
É certo que, neste algoritmo tecnológico, o antigo primeiro-ministro José Sócrates só poderia ter tido uma boa classificação, já que viveu luxuosamente numa "maison" em Paris e viajou sempre em classe executiva. Mas, tal como as críticas que a aplicação chinesa gerou por se recear uma gigantesca invasão de privacidade e discriminação, também a exposição televisiva dos interrogatórios da Operação Marquês, nos últimos dias, levantou uma série de questões legais e éticas.
Ao verdadeiro "reality show" diário, de que qualquer produtor de televisão se orgulharia, seguiram-se as críticas da Ordem dos Advogados e do presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Já a procuradora-geral da República ficou "desagradada" com a divulgação dos interrogatórios.
Não se trata de avaliar o conteúdo, nem da sua relevância pública, longe disso, mas sim e apenas da sua forma. A exposição de interrogatórios de qualquer processo não é assim tão diferente do acesso indevido a dados privados dos utilizadores do Facebook que tanta tinta fez correr. Em ambos os casos, é a privacidade que é violada.
Haverá privacidade de primeira e de segunda? Que pontuação teriam os que partilhariam imagens de arguidos, testemunhas e advogados se o enredo fizesse parte de um episódio do "Black mirror"?
Tal como a China é capaz de reconhecer qualquer um dos seus cidadãos em apenas três segundos, graças a um sistema de videovigilância e reconhecimento facial que até 2020 terá 600 milhões de câmaras, nós também caminhamos para aprovar e aplaudir uma aplicação de classificação social.
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