Não é uma gralha. É mesmo chef, de cozinha, e não chefe. Muitas vezes desvalorizamos aquilo cuja presença na nossa vida é tão óbvia que confundimos com pouca importância. É o caso da comida ou, naquilo que cultural e economicamente representa, a gastronomia. Eça de Queiroz dizia que investimos tanto tempo e criatividade na cozinha como na arte. É uma necessidade animal de sobrevivência. Mas é também algo que nos identifica social e cultural, através de como comemos, o que comemos, com quem comemos e de que tratamos e falamos quando comemos.
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A gastronomia foi tema esta semana, a propósito da Gala de atribuição das estrelas Michelin que pela primeira vez decorreu em Portugal. Não vou discutir os critérios do guia ou entrar na discussão estéril que contrapõe cozinha tradicional e cozinha criativa ou de autor. Toda a cozinha tradicional foi, na origem, criativa e não existe cozinha criativa sem o conhecimento "depositado" na cozinha tradicional. Quero antes usar o pretexto dessa atenção para falar do valor económico e social da gastronomia e o papel dos chefs de cozinha de nesse contexto. A gastronomia não são os chefs mas eles são a sua elite. A minha opinião é que não nos devem só dar de comer...
Se somarmos a contribuição para o PIB de várias áreas relacionadas com a gastronomia, como agricultura, indústria agroalimentar ou de equipamentos de cozinha, restauração e turismo, poderíamos dizer que 20% da nossa economia está, de alguma forma, ligada a alimentação e gastronomia. Um caso de estudo é o Peru. O país que tem dois restaurantes na lista do top 10 dos melhores restaurantes do mundo é hoje mais visitado para comer do que para ver Macchu Picchu. O retorno direto da gastronomia é de 5 mil milhões no Peru, sendo que os "turistas gastronómicos" têm mais formação superior e gastam mais dinheiro do que os visitam por outras razões. Outro exemplo é a Itália que tem no reconhecimento internacional da sua gastronomia o mais poderoso instrumento de promoção e distribuição do seu setor agroalimentar que exporta mais de 40 mil milhões de euros por ano. Este potencial de receitas não é o único impacto económico da gastronomia. Como comemos também afeta fortemente os custos de saúde por exemplo...
Apesar disto, a importância e económica e social da gastronomia ainda está pouco estudada e muitos não atribuem aos chefs nenhuma responsabilidade económica e social. A sua função seria apenas (e não seria pouco) fazer-nos felizes cozinhando bem. Felizmente, alguns chefs estão a desafiar esse papel. Internacionalmente chefs como Andoni Aduriz assumem a liderança na defesa da responsabilidade social dos chefs, por exemplo na sustentabilidade ambiental. Mas em Portugal também temos exemplos. João Rodrigues, do Feitoria, está a fazer um trabalho simultaneamente antropológico e de promoção económica no mapeamento de produtos e pequenos produtores do nosso território. Leonel Pereira, no São Gabriel, trabalha com o Centro de Ciências do Mar da U. do Algarve na descoberta de novos recursos e espécies alimentares no mar. Poderia citar muitos outros, com especial mérito para aqueles que trabalham em cidades mais pequenas (como António Loureiro, em Guimarães, que ganhou um prémio de sustentabilidade ambiental ou Diogo Rocha em Viseu). Eles colocam a sua capacidade de fazer boa comida ao serviço da promoção económica dos seus territórios, da sustentabilidade ambiental e mesmo da saúde. Talvez desta forma eles contribuam mesmo para mudar o Mundo. Não é por acaso que, há pouco tempo, Daniel Innerarity dizia que a gastronomia será o principal tema filosófico do futuro. A reflexão filosófica não compete aos chefs mas pensar sobre o que fazem sim. A eles como a qualquer um de nós.
*PROFESSOR UNIVERSITÁRIO