Nem a pandemia parou a tradição de dar aconchego ao estômago de quem precisa na noite de consoada, em Guimarães.
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A primeira ceia de Natal no Albergue de São Crispim, em Guimarães, foi em 1315. Mais de 700 anos depois, o costume mantém-se. No dia 24 de dezembro, voluntários prepararam o bacalhau com batatas e as rabanadas para os mais pobres. Este ano, como em 2020, não se comeu no espaço apertado, por trás da capela. Para evitar o ajuntamento, a refeição foi servida em takeaway.
"Vêm aqui buscar e depois vão comer sabe-se lá onde. Quem tem uma casinha vai comer a casa, quem não tem... Gostávamos de fazer a refeição aqui, mas as autoridades não permitem e temos de respeitar", lamenta José Pereira, o juiz da irmandade de São Crispim e São Cipriano.
A ceia faz-se num edifício medieval, escondido numa viela apertada entre a capela e as casas. O chão é de terra batida, as paredes caiadas e o teto, seguro por velhos barrotes de madeira, fica perigosamente perto da cabeça dos mais altos. A cozinha, onde o único sinal de modernidade é a água corrente, fica no primeiro andar. Cozinha-se ao lume, em panelões de ferro.
Teresa e Abílio procuram desembaraçar-se a fazer comida para tanta gente, sem a ajuda da Fernandinha, que até aos 91 anos foi a chefe. "Há dois anos ela ainda se sentou ali ao canto a dizer como é que se fazia", conta Teresa. "O ano passado, estava doente, já não veio", suspira Abílio. Fernanda morreu em janeiro de 2021, mas, pela juventude da maior parte dos voluntários, não falta quem continue a missão.
Ninguém fica sem comer
Teresa trabalha em turismo, "ou melhor, trabalhava, porque agora está tudo parado". Abílio é advogado. Anteontem foram cozinheiros. Cortam couves, descascam batatas, avaliam a cozedura. Ao fim da tarde, pobres, sem-abrigo e pessoas que não têm ninguém com quem partilhar a noite de Natal juntaram-se na viela. Às 18 horas, ainda havia lojas abertas, mas os últimos compradores não se apercebem do frenesim que acontece no beco mal iluminado. "Chegamos a servir 640 ceias, saíam uns e entravam outros, tinha de vir aqui a Polícia orientar as filas. Eram outros tempos, de muita miséria", recorda José Teixeira.
Já houve anos com menos de 100 pessoas, em 2020 foram 150. Muitos perderam o emprego, diz José Teixeira, admitindo que, por ser para levar para fora, pode ter vindo gente que de outra forma não viria. Uma "pobreza envergonhada".
Quando os sinos da Capela de São Crispim bateram as 19 horas, abriram-se as portas e começou a distribuição. Batatas com bacalhau, sobremesa e uma pequena garrafa de vinho, um edredão, um guarda-chuva e um maço de cigarros. Os que vêm de mão estendida não querem falar, alguns pedem para não ser fotografados, nem de costas. Entram de cabeça baixa e saem da mesma forma.
Este ano serviram-se cerca de 100 refeições. Quando tudo termina, os voluntários ainda têm de limpar antes de irem para as suas famílias, nunca antes da meia-noite.