Da combinação perfeita entre a ciência, a participação popular e a vontade política nasceu a imponente Rede de Áreas Marinhas Protegidas dos Açores. São quase 300 mil quilómetros quadrados de águas “abençoadas”, total ou parcialmente, qual semente de amor deixada a futuras gerações azuis.
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Os Açores querem, os parceiros sonham, a obra nasce. De punho em riste como quem lidera, o arquipélago das nove sentinelas do Atlântico tem despertado a curiosidade internacional pela forma como acarinhou as suas águas, protegendo 287 mil quilómetros quadrados de mar.
O passo decisivo foi dado em 2024 com a aprovação da chamada rede de Áreas Marinhas Protegidas (AMP) dos Açores, que permitiu à região autónoma consolidar o seu papel na concretização da meta global de proteção de 30% do Planeta. Tema que, aliás, esteve em destaque na terceira Conferência dos Oceanos da ONU, que decorreu em Nice, no sul de França. Nestas AMP, as regras são apertadas, nomeadamente com a proibição total ou parcial da pesca, mas o objetivo é claro: aumentar os stocks de peixes, assegurando a sustentabilidade e o futuro das comunidades piscatórias. A estratégia soma anos de trabalho e ainda não está eficazmente implementada – o que deverá acontecer até 2030 – mas é impossível não imaginar o conforto das espécies marinhas nos seus santuários intocados e plenos de vida.
Representando mais de metade (56%) do mar português, as águas açorianas viram-se a braços com duros desafios. As alterações climáticas e a sobrepesca começaram a afetar a distribuição e abundância dos stocks, num círculo vicioso que gritava por ação. A vontade aliou-se, então, à ciência e à própria sociedade num projeto destinado a recuperar a Natureza e a aumentar as oportunidades de emprego para as comunidades que dependem de um oceano saudável.
“Os Açores já têm Áreas Marinhas Protegidas desde os anos 1980, mas, em 2019, iniciaram, em parceria com a Fundação Oceano Azul (FOA) e o Instituto Waitt, dos EUA, o programa ‘Blue Azores’, que serviu como catalisador para todo o processo”, explicou Luís Bernardo Abreu, coordenador da iniciativa e responsável pelas pastas do Mar e das Pescas. Mãos à obra.
Seis anos fora do gabinete
“Começámos por usar o melhor da ciência disponível. A Universidade dos Açores tem uma grande história de investigação e ajudou-nos muito nesta fase. Conseguimos mapear, criar cenários de conservação para perceber que ativos é que tínhamos e o que devíamos proteger”, descreveu. O passo seguinte foi dar voz aos interessados, os utilizadores do mar. “Foi um processo de 18 meses e 43 reuniões com associações de pesca e turismo, entidades do Estado e da região com competências no mar e organizações não governamentais” (ONG), referiu, mencionando que todos os participantes tiveram a oportunidade de propor áreas e discuti-las.
Para Emanuel Gonçalves, administrador e coordenador científico da FOA, esta foi uma das mais-valias do programa, que esteve em destaque na Conferência dos Oceanos. “Não foi feito no gabinete, houve uma participação alargada para a definição de objetivos estratégicos baseados na ciência.”
Seguiu-se o pilar da decisão política. “Num processo destes, é normal que não haja um consenso geral entre todos aqueles que estão a competir pelo mesmo espaço e, portanto, houve a decisão política”, constatou Luís Bernardo Abreu.
Nesta área, Emanuel Gonçalves também vê um aspeto diferenciador: “Ao protegerem o mar de forma total ou alta – a proteção alta permite apenas uma extração ligeira com métodos sustentáveis como o salto e vara e sujeitos a licenças –, os Açores despertaram a atenção internacional porque, normalmente, é aí que muitas AMP falham: não têm standards, permitem as atividades extrativas em todo o lado”.
Garantir que ninguém pague sozinho a fatura
Aprovada a designação das 29 áreas marinhas oceânicas dos Açores (há outras tantas costeiras), é preciso garantir que a estratégia não caia no esquecimento.
“Se não houver modelos de gestão, se não se regulamentar com que periodicidade são monitorizadas a nível ambiental e de fiscalização, se não houver um modelo financeiro para saber quanto custam a longo prazo, as AMP acabam por nunca sair do papel”, frisou o responsável do “Blue Azores”. Por isso, no diploma aprovado, ficaram acautelados “prazos concretos e diplomas adicionais que têm de ser criados” para uma implementação efetiva.
“Nos próximos três anos, o Governo tem de publicar uma estratégia de gestão, fazer os planos de ordenamento das AMP e rever as áreas marítimas costeiras, adicionando-as ao parque marinho”, detalhou.
Além disso – e “para garantir que ninguém fique para trás a pagar, sozinho, a fatura deste compromisso ambiental” –, o Governo preparou mecanismos de apoio financeiro para cobrir eventuais perdas dos utilizadores do mar. Adicionalmente, desenvolveu um plano de reestruturação do setor da pesca em várias áreas, desde “a segurança marítima à digitalização, descarbonização e à capacitação profissional”. Para que todo o plano possa ser concretizado no prazo estabelecido, os parceiros Blue Azores - Fundação Oceano Azul, Instituto Waitt, Governo Regional e “Blue Nature Alliance” asseguraram um financiamento de dez milhões de euros.
Proposta do PS? Retroceder traria “grande dano reputacional”
Em março, o grupo parlamentar socialista na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores apresentou uma proposta de alteração legislativa destinada a autorizar a pesca de atum com salto e vara nas AMP totalmente protegidas, alegando tratar-se de “um método artesanal” em que “o pescador pode selecionar o peixe que captura”.
Sugestão que surpreendeu a FOA. “A fundação não compreende como é que se propõe alterar uma legislação que ainda não entrou em vigor e desclassificar áreas que ainda não mostraram o seu potencial de utilização”, sublinhou Emanuel Gonçalves.
“Entendemos as preocupações que os setores têm demonstrado com os potenciais impactos da implementação, mas também observamos que há garantia de que esse impacto será compensado”, notou. Por isso, “depois da grande atenção que os Açores têm despertado a nível internacional com esta estratégia, a reversão seria um dano reputacional muito grande para o país”.
Embora reconheça que “os parlamentos e as instituições democráticas são soberanos para tomar decisões”, a FOA acredita que a rede de Áreas Marinhas Protegidas dos Açores é “um processo único, feito som os standards certos, no tempo certo e com todo o potencial de ser transgeracional”. “Esta decisão não é apenas para os que estão cá hoje, fica para o futuro, já que a ciência nos mostra que é imperativo proteger de forma total pelo menos 30% dos oceanos.”
Para Emanuel Gonçalves, é fundamental que a discussão continue em cima da mesa, de forma a acabar com alguns equívocos. Um deles é a ideia de que “as áreas totalmente protegidas prejudicam a pesca”, quando, na verdade, “foram colocados mecanismos financeiros à disposição” caso haja perdas. “Também é preciso desconstruir o mito de que as AMP não beneficiam os atuns por serem altamente migratórios. Não é verdade, a ciência mostra exatamente o contrário: que áreas de grandes dimensões como a dos Açores trazem benefícios para essas espécies, nomeadamente porque se reproduzem e alimentam nessas zonas.” Luís Bernardo Abreu também não tem dúvidas: “A rede de AMP é um benefício para a pesca. A médio prazo, os pescadores são os que mais vão beneficiar porque vai haver mais peixe no mar”.
Goraz aumentou 400% em menos de dez anos
O exemplo do monte submarino Condor é um dos casos de estudo na temática da preservação marinha. Em 2010, a pesca de fundo foi proibida naquele local, com o objetivo de avaliar se a interdição surtia efeito na recuperação das comunidades de peixes demersais. Em 2022 foram publicadas as primeiras conclusões. As espécies, que vivem a maior parte do tempo no fundo do mar, mostraram estar a recuperar, em especial o goraz, que, em menos de uma década, teve um aumento de 400%.
“As AMP servem, em primeiro lugar, para proteger ecossistemas vulneráveis, mas contribuem largamente para o aumento dos stocks de peixes. Servem como um balão de ar fresco”, descreveu o responsável da “Blue Azores”.
Se há uma lição que a Europa pode aprender com o arquipélago português é a de que “mais importante do que fazer compromissos é passar à ação”. “O caso dos Açores é exemplar. Daqui a três anos pretendemos ter estas áreas totalmente implementadas. Estamos a falar de 287 mil quilómetros quadrados. É a maior rede de AMP do Atlântico Norte, mas não é só uma grande área, tem padrões de conservação muito ambiciosos”, realçou Luís Bernardo Abreu.
Também há muito trabalho feito nas escolas, com vista à criação de gerações verdadeiramente comprometidas com a causa ambiental. À boleia do programa “Educar para uma Geração Azul”, os professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico foram instruídos a incluir o tema do mar dos Açores nos programas letivos. A avaliar pelas palavras do pequeno Tiago, num vídeo partilhado pelo próprio “Blue Azores”, missão cumprida. “Ninguém é dono do mar. O mar é de todos”.