A serra da Estrela está de cerimónia, coberta de branco, no horizonte azul da estação de caminhos de ferro de Mangualde. Na plataforma, puxam-se cabos e fazem-se as últimas afinações para preparar o regresso do comboio, praticamente três anos depois da última paragem naquela estação.
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A reabertura da linha da Beira Alta, no troço entre Mangualde e Celorico da Beira, está aprazada para depois de amanhã, dia 6 de abril, segundo informação oficial da Infraestruturas de Portugal (IP), com uma semana de atraso em relação ao prazo anterior, 30 de março. Os comboios regressam praticamente três anos depois do encerramento da linha, a 19 de abril de 2022, para uma paragem prevista de nove meses.
"São três anos para esquecer", desabafa Pedro Jerónimo, que aguarda a chegada de passageiros. Durante este tempo, o serviço ferroviário foi substituído por autocarros, que cobrem as mesmas estações e apeadeiros da linha da Beira Alta, com horários e tempos de viagem similares ao Regional, que pára em todas, ou ao Intercidades.
Um dos autocarros acaba de parar. Trás cinco pessoas. Um casal desce os degraus e Margarida sorri com um entusiasmo gentil quando ouve falar na reabertura da Linha da Beira Alta. "É só daqui para Celorico? Que pena", esmorece. Viajou com o marido, José Cabral, desde Lisboa, fez transbordo em Coimbra para o autocarro ao serviço da CP, no caso o rápido, mais concorrido, com ligação à Guarda.
"Isto é tirar do banco para viver, que não há trabalho"
"O comboio é muito mais cómodo", diz Margarida, lamentando as curvas que leva a estrada entre Coimbra e Mangualde, parte pelo IP3, conhecida como a estrada mais mortal do país. "No inverno é ainda mais perigoso. Era bom que o comboio voltasse", acrescenta, enquanto carregam a carrinha para rumar a casa numa aldeia do concelho de Penalva do Castelo.
“Com o comboio havia mais serviço. Viseu é aqui ao lado. E havia sempre pessoas a levar para aldeias aqui próximas. Agora não há nada”, recorda Pedro Jerónimo. Dezena e meia de carros estacionados no desafogado parque junto da estação sinalizam a ligação à ferrovia, apesar do percurso feito por estrada. A estação de Mangualde está arranjadinha. Os azulejos azuis, contemporâneas reminiscências de outros tempos, decoram a sala de espera. As cadeiras parecem novas, poupadas há três anos ao dever de dar descanso e conforto aos utentes.
Pára outro autocarro. Arranca logo a seguir, nem as portas abre. Não há passageiros para entrar ou sair. É o serviço regional, que substituiu o comboio da CP com a mesma designação, parando em todas as estações e apeadeiros entre Coimbra e a Guarda. "Ninguém, ninguém. É isto todos os dias", acrescenta Pedro Jerónimo.
O táxi tem uma efígie de França, a azul e vermelho, à esquerda. Ao centro, a estrela de três bicos num círculo, que faz o símbolo da Mercedes. "Isto é que conta", aponta, correndo o indicador entre os símbolos. "O carro, as licenças, a casa foi tudo pago com francos. Euros não dá nada", acrescenta Pedro Jerónimo, que emigrou para França aos 12 anos e por lá fez vida e aforrou durante quatro décadas. O regresso a Portugal, não correu como o desejado, particularmente nos últimos anos, com o decréscimo do serviço de táxi com o fim do comboio na estação de Mangualde. "Isto é andar a tirar do banco para viver, que não há trabalho nenhum", desabafa, ao deixar a estação para ir almoçar.
"É muito transtorno" andar de autocarro
Da parte da tarde a mesma cena, novo take. Chega o rápido e desembarcam quatro pessoas. Elvira Coelho, 75 anos que parecem menos uma dezena, chega de Lisboa, mochila às costas, ao encontro do marido, Amadeu. Entrou no Oriente, saiu em Coimbra B e fez o resto do percurso de autocarro. "É um transtorno enorme", desabafa, fresca de verbo e no gesto. "Era mais fácil quando havia comboio", acrescenta.
A notícia de que a linha está para reabrir espevita-lhe o discurso. "Já tarda. Foi tempo demais fechada", diz, ainda que o tramo que agora volta a servir a população, até Celorico, de nada lhe sirva. O que lhe importava, era o tempo andar para trás. "Antes, o comboio era direto de Lisboa", diz. "Agora é muito transtorno", acrescenta Amadeu, que rumou à capital com 14 anos e por lá fez vida, até regressar ao colo da terra-mãe, para a reforma.
A serra da Estrela está engalanada, vestida de branco no horizonte da estação de caminhos de ferro de Mangualde. "Quando está coberta de neve, senti-mos o frio lá em cima na aldeia", diz Elvira, puxando o braço ao marido. "Chega-te ao pé de mim, que não te vejo desde sexta-feira", acrescenta, em posição para a fotografia. Estão casados vai para 54 anos, a 11 de abril. É terça-feira, ultimam-se os preparativos na estação de Mangualde. O edifício foi remodelado, as placas são novas e o ferro dos carris brilha ao sol.
Faz falta ligação para Coimbra
Há outro autocarro que pára para logo arrancar. Ninguém entra ou sai. É mais um regional, que segue as estações da CP em direção ao Interior, e há-de chegar à Guarda. Antes, pára em Celorico da Beira. Ana Rita espera na estação do lado oposto da linha. O comboio está sobre os carris, a ronronar, pronto para rumar a Vilar Formoso. "Vou para Coimbra. Esse é que faz falta", diz a jovem engenheira informática, sem razões de queixa do autocarro. "Tento escolher estes, que substituem o Intercidades", os mais rápidos. "Mas preferia viajar de comboio. É mais confortável", diz, já conformada com o atraso no regresso da linha até Coimbra.
A fazer doutoramento na área da engenharia industrial, cruzou-se com a CP, num projeto sobre a melhoria da eficiência do pantógrafo do Alfa Pendular, um comboio que não é talhado para a linha da beira alta. Não foi premeditado, foi apenas uma ideia bem acolhida pela CP, esta de estudar o dispositivo no topo das locomotivas que recolhe corrente elétrica da catenária e faz andar os comboios.
"Quando houver comboios vai haver gente"
Ana Rita entra no autocarro. Saem dois passageiros. José Augusto regressa de Coimbra, do hospital. "Prefiro o comboio ao autocarro. Há mais horários, posso levantar-me", diz ao desembarcar em Celorico da Beira, com pressa de regressar a casa para descansar da cirurgia.
O relógio quase toca as 12.43 quando um homem chega apressado e compra bilhete, embarcando no comboio em direção a Vilar Formoso. É o único passageiro a fazer companhia ao maquinista e ao revisor. A linha entre Celorico da Beira e a Guarda foi reaberta a 25 de novembro e, dados da CP, transportou 2500 pessoas nestes quatro meses. Uma média de 20 por dia.
"Não há gente porque não há comboios", diz Margarida, que esperava a saída do marido do autocarro na estação férrea, acompanhada da filha, Rita . "Para a Guarda vão poucas pessoas", acrescenta a jovem. "Quando houver comboios, vai haver gente", vaticina a mãe.