No Muro dos Bacalhoeiros, na Ribeira do Porto, já viveram centenas de famílias. Resistem oito e três podem ser despejadas. O turismo tomou conta daquela zona do Centro Histórico.
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Contam-se pelos dedos das mãos os moradores que vivem no Muro dos Bacalhoeiros, na Ribeira do Porto. Outrora um local cheio de gente, onde se podia comprar de quase tudo, é agora um sítio "ermo à noite", onde já só vivem oito famílias. E três estão em risco de ser despejadas, situação por que já passaram muitas famílias do Centro Histórico do Porto. No Muro, há ainda um edifício devoluto à venda por um milhão de euros. Outro está em obras para ser mais um hostel. Quem ainda ali vive lamenta que o comércio se resuma a "comes e bebes" para os turistas. No entanto, João Queirós, sociólogo e investigador, admite que "é possível, perante este novo cenário de incerteza da atividade económica, que o turismo venha a sofrer um abrandamento".
Argentina Santos, 68 anos
Daqui só saio para o cemitério
"Já viveram aqui 300 famílias. Agora, é tudo botecos de comes e bebes. Não há onde possamos comprar um tubo de linhas para coser uma roupa, não há uma peixaria. As peixeiras deixaram de existir na Ribeira, porque lhes tiraram as bancas que havia. Não há onde a gente comprar uma hortaliça se não no supermercado". O desabafo é de Argentina Santos, que vive no Muro dos Bacalhoeiros desde que nasceu e que, há mais de 20 anos, foi seduzida para deixar a Ribeira e ir para os bairros. Situação que nunca aceitou.
"Daqui só saio para o cemitério. Foi aqui que criei os meus filhos, aqui criei as minhas netas, e continuarei a viver cá. Simplesmente não é como antigamente", salientou a moradora, apontando o dedo ao "turismo obsessivo" que está a deixar a Ribeira "sem identidade".
João Queirós ressalva que mesmo "antes de se verificar este índice de turismo, assistiu-se no Centro Histórico do Porto (nas décadas de 70/80), a "um processo de abandono populacional", causado por vários fatores como "a procura de melhores condições habitacionais, a especulação imobiliária ou a ausência de políticas públicas". Ainda assim, o investigador não tem dúvidas em afirmar que "desde 2012/2013, o turismo deu um impulso gigantesco à cidade, tendo forçado a saída de pessoas".
Maria Argentina quando vai à varanda quase não vê vizinhos. "De um lado tenho um hostel, do outro também. Inclusivamente, o edifício que tem um consulado, no 1.º andar, passou a ser um hostel e no rés-do-chão, onde atendiam as pessoas, é uma casa de tapas, de queijo e presunto, onde se serve vinho, mesmo em cima da muralha histórica. O próprio muro é que serve de mesa e isso não é lógico", concluiu.
Manuel Andrade, 72 anos
O que fazia a amizade era a pobreza
É no lado direito do Muro dos Bacalhoeiros, entre o Largo do Terreiro e a Travessa do Outeirinho - onde já não vive ninguém, predominando os restaurantes e o alojamento local - que Manuel passa os dias. Na Associação Cultural de Artesanato Tradicional do Centro Histórico do Porto faz réplicas de barcos em madeira.
Manuel mora com a mulher, Ilda, a "três passos" dali, no lado esquerdo do Muro dos Bacalhoeiros, o número 110. Nasceu no 106. Tal como Argentina Santos, reconhece que "o Muro era todo cheio de gente" e que "foi triste ver as pessoas a sair", mas admite que "é a evolução dos tempos".
"Não quero voltar aos tempos em que havia muita miséria. O que fazia a amizade era a pobreza. Se a pessoa não tinha pão ia buscar à vizinha. Para não voltar a esses tempos, o mundo avança e o progresso é isto que se vê", confessou.
Para o artesão, a mudança na Ribeira deu-se com a chegada de Rui Rio à Câmara do Porto. "Encontrou a Autarquia em péssimo estado e decidiu vender património. Se hoje o Hotel Pestana ocupa metade do Muro deve-se ao senhor Rui Rio", frisou o morador.
Mas logo reconhece: "Compreendo que um presidente quando encontra uma Câmara endivida só tem que recorrer do património que tem". Mesmo que isso traga para a Ribeira "vivências diferentes".
Belmira Amaral, 75 anos
Antigamente era muito mais bonito
Viúva há 23 anos, Mira, como carinhosamente é tratada pelos vizinhos Belmira Amaral, vive no Muro dos Bacalhoeiros desde sempre. "Nasci no número 100. Casei-me e vim para o 101 e aqui criei os meus cinco filhos. Aqui a vida toda!", recorda, em tom saudoso de "outros tempos".
Enquanto estende a roupa à varanda, conta que nota diferenças, "em tudo". E desenvolve: "Aqui era muita gente, havia muitas famílias, agora não se vê ninguém. Se precisar de um vizinho não tenho quase ninguém. É tudo estrangeirada e a gente não os percebe. Agora, há mais hostels do que moradores", diz desgostosa, perante um cenário que se estende a todo o Centro Histórico.
Do mesmo modo, Mira queixa-se que à noite "é um ermo, não se vê ninguém". Mas logo o olhar, fixo nas águas do rio Douro, volta a sorrir quando abre o baú das recordações: "Antigamente era muito mais bonito, tinha barracas ali fora, vendia-se hortaliça, peixe. Agora não. Agora vive aqui poucochinha gente. Tenho muitas saudades do povo que aqui vivia, era um muro cheio! Fazia-se o S. João, o Carnaval, com as crianças aqui todas vestidas com as fantasias".
Memórias de outros tempos que também eram sinónimo de dificuldades. Naquela altura, a casa de Mira, composta "por uma sala e um quarto pequenino", servia de teto a oito pessoas. "E ninguém morreu", contou a sorrir.
Detalhes
Muro dividido em dois
O Muro dos Bacalhoeiros fica sobre o Cais da Estiva, numa área compreendida entre a Travessa do Outeirinho e o Largo do Terreiro e entre este largo e a Praça da Ribeira.
Origem do nome
De acordo com Germano Silva, jornalista e historiador do Porto, o nome daquela zona ficou a dever-se aos bacalhoeiros que chegados da Terra Nova ali atracavam para comprar o material que se havia estragado durante a viagem. Nos estabelecimentos que agora são restaurantes e alojamento local, vendiam-se velas, cordas e roldanas, entre outros artigos.